As parábolas (do grego παραϐολή, parábola)
do Novo Testamento encontram-se, principalmente, nos três Evangelhos
sinópticos. Trata-se de histórias alegóricas contadas por Jesus de Nazaré e que
apresentam um ensinamento moral e religioso. Seguindo um processo enraizado na
tradição judaica, estas histórias visam apresentar verdades através de
elementos da vida quotidiana ou da observação da natureza, mas afastam-se em
Jesus da forma simplesmente pedagógica de interpretação da Lei pelos rabinos
para evocar o Reino de Deus e as mudanças que ocorrem no momento da Sua vinda.
Existem 42 parábolas, das quais onze são comuns aos três Evangelhos sinópticos,
oito a dois Evangelhos, uma encontra-se exclusivamente no Evangelho de Marcos,
seis apenas no de Mateus, treze no de Lucas e três no Evangelho de João.
Uma das mais interessantes parábolas, na opinião de quem escreve, é a do servo
mau (Mateus 18, 21-35) porque fala do uso do poder.
«Então, Pedro aproximou-se e perguntou-lhe: “Senhor, se o meu irmão me
ofender, quantas vezes lhe deverei perdoar? Até sete vezes?”. Jesus respondeu: “Não
te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete. Por isso, o Reino do Céu é
comparável a um rei que quis ajustar contas com os seus servos. Logo ao
princípio, trouxeram-lhe um que lhe devia dez mil talentos. Não tendo com que
pagar, o senhor ordenou que fosse vendido com a mulher, os filhos e todos os
seus bens, a fim de pagar a dívida. O servo lançou-se, então, aos seus pés,
dizendo: ‘Concede-me um prazo e tudo te pagarei’. Levado pela compaixão, o
senhor daquele servo mandou-o em liberdade e perdoou-lhe a dívida. Ao sair, o
servo encontrou um dos seus companheiros que lhe devia cem denários. Segurando-o,
apertou-lhe o pescoço e sufocava-o, dizendo: ‘Paga o que me deves!’. O seu
companheiro caiu a seus pés, suplicando: ‘Concede-me um prazo que eu te pagarei’.
Mas ele não concordou e mandou-o prender até que pagasse tudo quanto lhe devia.
Ao verem o que tinha acontecido, os outros companheiros, contristados, foram
contá-lo ao seu senhor. Então o senhor mandou-o chamar e disse-lhe: ‘Servo mau,
perdoei-te tudo o que me devias porque assim mo suplicaste; não devias também
ter piedade do teu companheiro como eu tive de ti?’. E o senhor, indignado,
entregou-o aos verdugos até que pagasse tudo o que devia. Assim procederá
convosco o meu Pai celeste se cada um de vós não perdoar ao seu irmão do íntimo
do coração”».
Como explicar que um servo devia dez mil talentos ao seu rei? Que rei teria
emprestado uma soma tão exorbitante a um dos seus escravos? É difícil de
acreditar, a menos que estes “servos” fossem vassalos do rei ou senhores ou
governadores responsáveis pela administração de um distrito do seu reino.
Talvez seja melhor não procurar uma resposta a estas questões. Jesus precisava
que a soma fosse enorme para os fins da Sua parábola. O “talento” representava
um certo peso em prata ou ouro que variava de país para país. Na Grécia era
equivalente a 6.000 denários, ou seja, 6.000 vezes o salário diário de um
trabalhador agrícola (Mateus 20, 2). Dez mil talentos representavam, assim,
600.000 vezes a dívida do segundo devedor: é esta desproporção que conta na
parábola.
O servo, obviamente, não podia pagar uma dívida tão enorme. O rei decidiu,
portanto, vendê-lo como escravo, juntamente com toda a sua família. Esta era
também uma prática comum em Israel (Levítico 25, 39-47; 2 Reis 4, 1; Neemias 5,
5; Isaías 50, 1; Amós 2, 6; 8, 6). Este rei não é um tirano, age segundo os
costumes da época. É simplesmente justo. É uma ilustração da enorme dívida
espiritual do homem, do seu total declínio. Não tem nada para reparar, para
expiar os seus pecados. Deus considera o homem responsável pelos seus pecados e
imputa-lhos. Por conseguinte, é escravizado pelos seus pecados.
E aqui intervém a graça de Deus, Aquele que tudo pode. Decide fazer tábua
rasa dos pecados deste infeliz homem e anula a sua dívida. Seria de esperar
muita gratidão por parte do servo. Mas não, não só não mostra qualquer
gratidão, mas assim que as suas dívidas (leia-se, pecados) são anuladas, pensa
em cometer novas. E assim entra na espiral descendente e maléfica do mau uso do
poder. Este é um assunto que, infelizmente, é pouco explorado pelas escolas, pela
família e mesmo pela Igreja: de facto, não ouvimos homilias sobre a questão.
Talvez porque a noção de poder tenha sido simplificada, ligando-a ao mal,
poder=mal, mau uso. Mas não é assim e esta parábola mostra-nos isso: o primeiro
devedor beneficia de uma acção de bom uso do poder (compaixão, misericórdia),
enquanto o segundo é vítima do mau uso do poder (crueldade, impiedade). Apesar
de ter acabado de ser perdoado, o servo mau é ele próprio incapaz de perdoar.
Este é um aspecto que também observamos na nossa vida de todos os dias: há
pessoas que se sentem tão indignas da bondade de Deus que não consideram o
perdão nem para si próprias nem para os outros (é a principal razão pela qual muitos
não se confessam). Estão tão afundados no pecado como acção de cada momento que
consideram inútil o perdão. Podemos deduzir que o servo mau não é capaz de
perdoar porque lhe falta a capacidade de ser perdoado, pensando
inconscientemente que não o merece. De facto, à inflexibilidade da atitude
acrescenta-se também a violência, porque, não esqueçamos, o servo mau, encontrando
o seu devedor, pegou-lhe pelo pescoço e «sufocava-o».
A terrível cena é representada com maestria por um artista italiano pouco
conhecido da maioria, mas cujas obras podem ser encontradas num grande número
de museus no mundo. A obra é “Parábola do servo mau”, pintada em 1620 e exposta
na Gemäldegalerie Alte Meister (Pinacoteca dos Mestres Antigos) de Dresden. O
artista é Domenico Fetti (Roma, 1589 – Veneza, 16 de Abril de 1623), ou Feti,
também conhecido como “o mantuano”. Foi um pintor italiano muito conhecido na
época barroca pela extraordinária veia naturalista das suas obras. Foi muito
prolífico, apesar da vida bastante curta que viveu. Nasceu em Roma, em 1589, e desenvolveu
a sua aprendizagem com Lodovico Cigoli (1559-1613). Em 1614, mudou-se para Mântua,
onde foi contratado pelos Gonzaga como pintor da corte, graças ao Grão-Duque Fernando,
que tornou as suas pinturas famosas. Deste período derivou, precisamente, o
apelido “o mantuano”.
Em Mântua conseguiu reunir o dinheiro necessário para abrir a própria oficina,
onde trabalhou também a sua família. Nesta cidade, Fetti pôde dedicar-se aos
frescos e às pinturas a óleo, que estão entre as suas pinturas mais famosas,
encomendadas principalmente pelas igrejas locais: citamos a Apoteose da
Redenção, na abside da Catedral de São Pedro; a Multiplicação dos Pães e
dos Peixes (onde da multidão do século XVII, pobre e faustosa, reaparecem
tipos de populares e velhos, de crianças, homens e mulheres), várias pinturas
de Mártires e outros quadros feitos para a Igreja de Santa Úrsula, hoje
guardados no Palácio Ducal de Mântua. Estes não foram os únicos quadros famosos
que chamaram a atenção dos mantuanos; são também dignos de menção os das
parábolas evangélicas (os cegos, o Bom Samaritano e o filho pródigo, bem como o
servo mau).
O artista tinha como modelos Giulio Romano, Caravaggio e Rubens, que inspiraram
a sua pintura feita de contrastes luminosos, cores intensas e pinceladas
ásperas. Em 1622, Fetti partiu para Veneza, onde, fascinado pela cidade, decidiu
ficar. Infelizmente, por pouco: no ano seguinte morreu de uma doença. Do seu
período veneziano, temos as três cenas da Paixão de Cristo, na Galeria
Corsini, em Roma. Também vale a pena mencionar a Melancolia (c. 1618),
exposta hoje em Paris (no Louvre): é uma obra de profundíssima inspiração.
Mas a intensidade da pintura que representa o servo cruel é mais marcante do
que todas as outras e faz reflectir. Pois não há pecado pior do que o pecado
contra a graça de Deus.
Liana Marabini
Através de La Nuova Bussola Quotidiana
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