Há vinte anos, um autor católico
alemão argumentou que uma Missa não é somente uma obrigação, mas uma obra de
arte.
Quando o romancista, dramaturgo e estudioso alemão Martin Mosebach publicou o
seu livro The Heresy of Formlessness, não
poderia absolutamente prever o drama dos sucessivos vinte anos. Mas, de alguma
forma, a sua vida tinha-o preparado para isso. Nesta bela e pessoal reflexão
sobre a fé religiosa e sobre o ritual, recorda a devoção do seu pai protestante
à leitura das Escrituras enquanto a sua mãe ia ocasionalmente à Missa. Do seu
pai aprendeu passagens como: «A iniquidade veio da Babilónia, de anciãos e
juízes, que passavam por dirigir o povo».
Tinha escrito um livro em defesa do Rito Romano antigo, a Missa latina
Tradicional da Igreja Ocidental, trinta anos depois de a Igreja Romana ter tentado
desfazer-se dela. A Missa antiga tinha devotos, entre os quais conservadores
americanos com uma inclinação literária, como Patrick Buchanan e o fundador da National
Review, William F. Buckley Jr. Porém, Mosebach tinha feito própria a causa da liturgia antiga. Mas em 2002, a Missa Tradicional estava em declínio, apenas
tolerada pelo Vaticano, apoiada por grupos religiosos excomungados e celebrada,
sobretudo, em lugares esquecidos. Tornar-se o seu paladino era colocar-se à
margem não só do mundo moderno, mas também da Igreja moderna. Era como confessar
um entusiasmo pela própria lepra.
No entanto, embora este antigo rito seja celebrado por menos de metade de um
por cento dos católicos em todo o mundo, e ainda menos quando Mosebach começou
a frequentá-lo, pode-se afirmar com certeza que o estatuto da antiga Missa e
dos seus devotos se tornou a principal controvérsia teológica na Igreja
Católica nos últimos vinte anos. O compatriota de Mosebach, o Cardeal Joseph
Ratzinger, que se tornou Papa Bento XVI, isentou todos os sacerdotes da Igreja
Católica do uso da liturgia. O seu sucessor, o Papa Francisco, com Bento ainda
vivo, empreendeu uma guerra retórica constante contra o jovem clero
tradicionalista, antes de declarar falhada a experiência de Bento XVI e
lançar uma campanha para suprimir a velha Missa como uma ameaça à própria
Igreja.
O grande benefício da reflexão de Mosebach sobre a Missa deriva da sua vocação de
narrador e libretista. Para se destacar nesta arte, o autor deve considerar
cada detalhe, cada cor escolhida, o ritmo da prosa na página que se torna
diálogo e o significado por detrás de cada objecto tocado ou transportado pelos
protagonistas no drama. Considera o ritual em si como «uma daquelas pessoas
simples que olham para a superfície, a aparência exterior das coisas, para
julgar a sua natureza interior, a sua verdade ou a sua falsidade». É algo semelhante
a um materialista espiritual, afirmando que «toda a matéria é tão cheia de
espírito e vida que simplesmente transborda».
Num capítulo provocatório, Mosebach tenta explorar a tese que contradiz a sua:
a ideia de que o cristianismo não precisa de um ritual. Cristo não tencionava
sempre pôr de lado a lei ritual, relativizando a letra da lei ao defender o seu
espírito? Cristo não se moveu através do Israel antigo, de tal forma que
praticamente proibiu os seus seguidores de Lhe erigirem santuários? E, no final,
não profetizou Ele a destruição e a erradicação religiosa da própria Jerusalém,
a cidade santa destinada a ser uma imagem do templo celestial?
O anti-ritualismo da mente moderna suspeita que existe sempre uma dicotomia
entre a aparência exterior e a realidade interior. Como disse um dos revisores
ingleses de Mosebach, esta atitude anti-ritualista plasmou a nova Missa. «Porque
quase tudo é facultativo e desnecessário, a Forma Ordinária [a Missa pós-Vaticano
II], para Mosebach, comunica perenemente a desunião entre a intenção espiritual
e o gesto exterior. A pletora de opções tanto para leigos como para sacerdotes
na liturgia contribui para a crença de que os gestos e os símbolos físicos são unicamente
adornos sentimentais para um verdadeiro culto interior».
Finalmente, defende a antiga Missa como uma obra de arte, completamente
integrada com as realidades espirituais e que ressoa totalmente em todos os
seus detalhes – mesmo os detalhes que a princípio nos confundem – com a acção salvadora
do próprio Cristo. Este entendimento acaba por esmagar a “defesa” apresentada
para que a liturgia reformada seja “válida” – ou seja, para desempenhar
legitimamente a tarefa de fazer acontecer o sacramento. Para Mosebach, o Concílio
de Trento tinha razão quando dizia que a Missa «não contém nada de injustificado
ou supérfluo», numa passagem que passo a citar longamente: «A Missa não
é um acto jurídico, algo que se torna “válido” na presença de requisitos
mínimos. Imaginai um cónego a tentar explicar a um visitante confuso e infeliz,
numa celebração dominical moderna, que o que aconteceu continha os vários
elementos (“primeiro, segundo, terceiro”) e era, portanto, uma Missa “válida” –
podia até carimbar-lhe um documento, certificando que tinha cumprido o seu
dever dominical! Não: a Missa não é uma actividade fundamental de base à qual
se podem acrescentar, de acordo com a oportunidade, vários elementos
decorativos para aumentar a consciência dos participantes. Os ritos “não contêm
nada de desnecessário ou supérfluo”. Quem ousaria afirmar encontrar elementos “desnecessários
ou supérfluos” num grande fresco ou numa grande poesia? Uma obra-prima pode
conter lacunas, partes menos felizes, repetições, coisas incompreensíveis ou
contraditórias, mas nunca coisas inúteis e supérfluas. Ao longo dos tempos,
houve quem se tenha feito ridículo na tentativa de eliminar os “erros” nas
obras-primas, aplicando a sua falta de erudição aos frescos de Michelangelo e
às tragédias de Shakespeare. As grandes obras têm uma alma: sentimo-la, viva e
radiante, mesmo onde o seu corpo tenha sido danificado. A liturgia deve ser
considerada, pelo menos, com o mesmo respeito de uma obra-prima profana deste
tipo. O respeito abre-nos os olhos. Muitas vezes, mesmo no caso de uma obra de
arte profana, se estudarmos e meditarmos conscienciosamente os detalhes,
especialmente os detalhes aparentemente supérfluos, descobrimos que o elemento incriminado
ganha vida inesperadamente; no final, acontece, por vezes, que o vemos como uma
qualidade especial da obra. Este é sempre o caso dos ritos da sagrada liturgia.
Não há nada neles que, através de uma intensa contemplação, não se mostre
absolutamente saturado de poder espiritual. Convido todos a estudar e reflectir
sobre o significado de cada elemento do rito – especialmente as partes que a
reforma do Papa Paulo VI considerou “desnecessárias e supérfluas” (contra a
advertência dada pelo Concílio de Trento) – e acharão o Concílio de Trento
esplendidamente justificado».
Para Mosebach, os nossos corpos têm uma forma querida por Deus, e o mundo
também, assim como a própria história. Somos criaturas litúrgicas – e sabemo-lo
pela forma como construímos a nossa vida através do hábito e da variação,
através das repetidas reaprendizagens e reapresentações do sentido da vida. O
nosso erro foi pensar que encontraríamos Deus como abstracções, que a fé fosse
um conjunto de proposições mentais que exigem apenas a nossa ascensão interior.
Mas Deus revestiu-Se de homem. O véu do Templo foi rasgado. O sino toca e os
nossos joelhos dobram-se e tocam a terra, as nossas línguas confessam as
palavras prescritas. As realidades espirituais têm forma.
Michael Brendan Dougherty
Através de National Review
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