Em plena Quarta-feira de Cinzas, dia
em que se inicia o tempo penitencial da Santa Quaresma, e a pedido de Mons.
Carlo Maria Viganò, o portal Dies Iræ disponibiliza a tradução, em
exclusivo para língua portuguesa, da meditação quaresmal redigida e tornada
pública por Sua Excelência Reverendíssima.
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2 de Março de 2022
Feria IV Cinerum, in capite jejunii
Venite, convertimini ad me, dicit Dominus.
Venite flentes, fundamus lacrymas ad Deum:
quia nos negleximus, et propter nos terra patitur:
nos iniquitatem fecimus,
et propter nos fundamenta commota sunt.
Festinemus anteire ante iram Dei,
flentes et dicentes:
Qui tollis peccata mundi, miserere nobis.
Transitorium ambrosianum
in Dominica Quinquagesimæ
Vinde e convertei-vos a mim, diz o Senhor. Vinde chorando, derramemos lágrimas
a Deus: porque transgredimos e, por nossa causa, a terra sofre: cometemos
iniquidades e, por nossa causa, os seus fundamentos foram abalados.
Apressemo-nos a prevenir a ira de Deus, chorando e dizendo: Vós que tomais
sobre Vós os pecados do mundo, tende piedade de nós.
É difícil, para um homem de hoje, compreender estas palavras do Missal Ambrosiano.
Não obstante, são simples na sua severa clareza, pois mostram-nos que a ira de
Deus, por causa dos nossos pecados e das nossas traições, só pode ser apaziguada com
a contrição e a penitência. No Rito Romano, este conceito torna-se ainda mais
claro na oração da Ladainha dos Santos: Deus, qui culpa offenderis,
pænitentia placaris: preces populi tui supplicantis propitius respice; et
flagella tuæ iracundiæ, quæ pro peccatis nostris meremur, averte. Ó Deus,
ofendido pela culpa e apaziguado pela penitência: olhai favoravelmente para as
orações do Vosso povo que Vos implora; e afastai de nós os flagelos da Vossa
ira, que merecemos por causa dos nossos pecados.
A Civilização Cristã aprendeu a tirar proveito desta noção salutar, que nos
afasta do pecado não só por medo do castigo justo que implica, mas também pela
ofensa causada à Majestade de Deus, «infinitamente bom e digno de ser amado sobre
todas as coisas», como nos ensina o Acto de Contrição. No decurso dos
séculos, a humanidade convertida a Cristo soube reconhecer o castigo de Deus
nos acontecimentos lutuosos da história, nos terramotos, na fome, na peste e
nas guerras; e sempre o povo atingido pelos flagelos soube fazer penitência e
implorar a Misericórdia divina. E quando o Senhor, a Santíssima Virgem ou os
Santos intervieram nos acontecimentos humanos por meio de aparições e
revelações, juntamente com o apelo à observância da Lei de Deus, ameaçaram
grandes tribulações se os homens não se convertessem. Também em Fátima, Nossa
Senhora pediu a Consagração da Rússia ao Seu Imaculado Coração e a Comunhão reparadora
dos Primeiros Sábados como meio para aplacar a ira de Deus e poder gozar de um
período de paz. Caso contrário, a Rússia «espalhará os seus erros pelo
mundo, promovendo guerras e perseguições à Igreja. Os bons serão martirizados,
o Santo Padre terá muito que sofrer, várias nações serão aniquiladas». O
que devemos esperar por ter ignorado os pedidos de Nossa Senhora e por ter continuado
a ofender o Senhor com pecados cada vez mais horríveis? «Não quiseram
satisfazer o Meu pedido! Tal como o Rei de França, arrepender-se-ão e fá-lo-ão,
mas será tarde. A Rússia já terá espalhado os seus erros por todo o mundo,
causando guerras e perseguições à Igreja». Estas guerras, que hoje afligem
a humanidade para a escravizar e submeter ao plano infernal do Great Reset
inspirado no Comunismo chinês, são, mais uma vez, o resultado da nossa indocilidade,
da nossa obstinação em acreditar que se pode espezinhar a Lei do Senhor e
blasfemar o Seu Santo Nome sem consequências. Que presunção miserável! Quanto
orgulho luciferiano!
O mundo descristianizado e a mentalidade secularizada, que contagiaram até os
católicos, não aceitam a ideia de um Deus ofendido pelos pecados dos homens, e
que os castiga com flagelos para que se arrependam e peçam perdão. No entanto,
este conceito está entre aqueles que a mão criadora de Deus imprimiu na alma de
cada homem, inspirando-lhe o sentido de justiça que os pagãos também têm. Mas
precisamente porque está presente em todos os homens de todos os tempos, os
contemporâneos ficam horrorizados com a ideia de um Deus que recompensa os bons
e castiga os maus, um Deus que se mostra na Sua cólera, que exige lágrimas e
sacrifícios a quem O ofende.
Por detrás desta aversão à ira do Senhor ofendido pelos pecados da humanidade –
e ainda mais pelos pecados daqueles que Ele fez Seus filhos no Baptismo – está
o ódio implacável do inimigo do género humano pelo Sacrifício redentor de Nosso
Senhor Jesus Cristo, pela Paixão do Filho de Deus, pelo resgate que o Seu
Sangue mereceu a cada um de nós depois da queda de Adão e dos nossos pecados
pessoais. Um ódio que se mantém desde a criação do homem, numa tentativa louca
de frustrar a obra de Deus, de desfigurar a criatura feita à Sua imagem e
semelhança, e ainda mais para impedir a reparação divina de Cristo, novo Adão,
e de Maria, nova Eva. Na Cruz, o novo Adão restaura a ordem quebrada pelo
pecado como Redentor; ao pé da Cruz, a nova Eva participa nesta restauração
como Co-Redentora. O fracasso da acção de Satanás realiza-se na obediência da
Segunda Pessoa da Santíssima Trindade ao Pai, na humilhação do Filho de Deus,
tal como a tentação de Adão foi consumada na desobediência à vontade do Senhor
e na orgulhosa presunção de poder quebrar as Suas ordens sem consequências.
O mundo não aceita a dor e a morte nem como castigo justo pelo pecado
original e pelos pecados presentes, nem como instrumento de resgate e de
redenção em Cristo. E é quase um paradoxo: aquele mesmo que, através da
tentação dos nossos Progenitores, introduziu a morte, a doença e a dor no
mundo, não tolera que esses também possam ser instrumentos de expiação, aceites
com humildade, para reparar a Justiça quebrada. Não tolera que as armas de
destruição e de morte possam ser-lhe retiradas para se tornarem instrumentos de
reconstrução e de vida.
O homem contemporâneo é novamente enganado por Satanás, tal como no Jardim do
Éden. Nessa altura, a Serpente fê-lo acreditar que a ordem de Deus para não
colher o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal não teria
consequências, na verdade, que, por essa desobediência, Adão se tornaria semelhante
a Deus; hoje, engana-o de que essas consequências são inescapáveis, e que não
pode aceitar a morte, a doença e a dor como um castigo justo, transformando-as
em seu próprio benefício unindo-as à Paixão e Morte de Jesus Cristo. Porque ao
aceitar a punição, o réu aceita a autoridade do Juiz, reconhece a infinita
gravidade da culpa, repara o crime cometido e expia a merecida punição. Ao
fazê-lo, volta à graça de Deus, frustrando a obra de Satanás.
Por esta razão, quanto mais se aproxima o fim dos tempos, tanto mais se
multiplicam as tentativas do Maligno para eliminar não só a Verdade revelada
por Cristo e pregada ao longo dos séculos pela Santa Igreja, mas para eliminar
o próprio conceito de justiça que está na base da Redenção, a ideia da
necessidade da punição pela violação, de reparação pela culpa, da gravidade da
desobediência da criatura para com o Criador. É evidente que quanto mais os
homens forem levados a acreditar que não cometeram nenhum pecado, mais pensarão
que não têm de se arrepender de nada, que não têm nenhuma dívida de gratidão
para com Deus, que amou tanto o mundo a ponto de dar o Seu Filho Unigénito,
obediente até à morte e morte de cruz.
Se olharmos à nossa volta, vemos como esta eliminação da Justiça, do sentido do
Bem e do Mal, da ideia de que existe um Deus que recompensa os bons e castiga
os maus, conduz a uma definitiva, irreparável e irremediável rebelião contra o
Senhor, premissa para a condenação eterna das almas. O magistrado que absolve o
criminoso e pune a pessoa justa; o governante que promove o pecado e o vício e
condena ou impede as acções honestas e virtuosas; o médico que considera a
doença como uma oportunidade de lucro e a saúde como um erro; o sacerdote que
se cala sobre os Novíssimos e considera “pagãos” conceitos como a penitência, o
sacrifício e o jejum em expiação dos pecados são todos cúmplices, talvez
inconscientes, deste último engano de Satanás. Um engano que, por um lado, nega
a Deus o senhorio das criaturas e o direito de as recompensar e punir de acordo
com as suas acções; enquanto, por outro lado, chega ao ponto de prometer bens e
recompensas que só Deus pode conceder: «Tudo isto te darei se, prostrado, me
adorares» (Mt 4, 9), ousa dizer a Cristo, no deserto, depois de O ter
conduzido ao cume do monte.
Os acontecimentos presentes, os crimes que são cometidos diariamente pela
humanidade, a multidão de pecados que desafiam a Majestade divina, as
injustiças dos indivíduos e das Nações, as mentiras e as fraudes cometidas
impunemente não podem ser derrotadas com meios humanos, nem mesmo se um
exército se armasse para restaurar a justiça e punir os ímpios. Porque as
forças humanas, sem a Graça de Deus e sem serem animadas por uma visão
sobrenatural, são estéreis e ineficazes.
Mas há uma forma de combater este engano, no qual a humanidade caiu há mais de
três séculos, ou seja, desde que teve o orgulho e a presunção de deificar o homem
e usurpar a Jesus Cristo a Sua coroa real. E esta forma, infalível porque é
divina, é o regresso à penitência, ao sacrifício e ao jejum. Não a vã
penitência daqueles que correm num tapis roulant, nem o estulto sacrifício
daqueles que se tornam estéreis para não sobrepovoar o planeta, nem o jejum
vazio daqueles que se privam de carne em nome da ideologia green. Estes
são, mais uma vez, enganos diabólicos com os quais silenciamos a nossa
consciência.
A verdadeira penitência, que a Santa Quaresma nos deve estimular a fazer
frutuosamente, é aquela com a qual cada um de nós oferece as privações e os
sofrimento em expiação dos próprios pecados e daqueles cometidos pelo próximo,
pelas Nações e pelos homens da Igreja. O verdadeiro sacrifício é aquele com o
qual nos unimos, com gratidão e reconhecimento, ao Sacrifício de Nosso Senhor,
dando um significado espiritual e um propósito sobrenatural à dor que, de
qualquer maneira, merecemos. O verdadeiro jejum é aquele com o qual nos
privamos de comida, não para perder peso, mas para restaurar a primazia da
vontade sobre as paixões, da alma sobre o corpo.
As penitências, os sacrifícios e os jejuns que faremos durante esta Santa
Quaresma terão um valor de reparação e de expiação que nos merecerá, assim como
aos nossos entes queridos, ao nosso próximo, à Pátria, à Igreja, ao mundo
inteiro e às almas do Purgatório, aquelas Graças que só por si podem deter a ira
de Deus Pai, porque ao unirmo-nos ao Sacrifício do Seu Filho transformaremos
num tesouro sobrenatural o que Satanás nos causou a todos, induzindo-nos ao
pecado com o desobedecer ao Senhor. Este tesouro restaurará a ordem quebrada,
restaurará a justiça violada, reparará os pecados que cometemos em Adão e
pessoalmente. Ao chaos infernal deve opor-se o kosmos divino; ao
príncipe deste mundo, o Rei dos reis; ao orgulho, a humildade; à rebelião, a
obediência. «Ora, foi para isto que fostes chamados, visto que Cristo também
padeceu por vós, deixando-vos o exemplo, para que sigais os seus passos. […] Ele
levou os nossos pecados no seu corpo, para que, mortos para o pecado, vivamos
para a justiça: pelas suas chagas fostes curados» (1 Pe 2, 21-24).
Concluo esta meditação citando a Epístola da Missa da Quarta-feira de Cinzas: é
retirada do livro do Profeta Joel e recorda-nos o papel de mediadores e
intercessores dos sacerdotes na admoestação do povo de Deus e no chamá-lo à
conversão. É um papel que muitos clérigos esqueceram, e que na verdade
rejeitam, acreditando que é o legado de uma Igreja antiquada que está desfasada
dos tempos, que ainda acredita que o Senhor deve ser “aplacado” com a
penitência e o jejum.
«Tocai a trombeta em Sião, ordenai um jejum, proclamai uma reunião sagrada.
Reuni o povo, purificai a assembleia, juntai os anciãos, congregai os
pequeninos e os meninos de peito. Saia o esposo dos seus aposentos e a esposa
do seu leito nupcial. Entre o pórtico e o altar chorem os sacerdotes e digam os
ministros do Senhor: “Tem piedade do teu povo, Senhor, não transformes em
ignomínia a tua herança, para que ela não se torne o escárnio dos povos! Porque
diriam: ‘Onde está o seu Deus?’”. O Senhor encheu-se de zelo pelo seu país e
teve compaixão do seu povo. O Senhor respondeu ao seu povo, dizendo: “Vou
enviar-vos trigo, vinho e azeite, e deles sereis saciados. E nunca mais farei
de vós uma ignomínia entre os povos”» (Jl 2, 15-19).
Enquanto temos tempo, caros irmãos, peçamos piedade a Deus, imploremos o Seu
perdão e reparemos os pecados cometidos. Porque chegará um dia em que o tempo
da Misericórdia será cumprido e iniciar-se-á o da Justiça. Dies illa, dies
iræ: calamitatis et miseriæ; dies magna et amara valde. Esse dia será um
dia de ira: um dia de catástrofe e de miséria; um dia grande e verdadeiramente
amargo. Nesse dia, o Senhor virá julgar o mundo com o fogo: judicare sæculum
per ignem.
Queira Deus que as admoestações de Nossa Senhora e dos Santos místicos possam
induzir-nos, nesta hora de trevas, a convertermo-nos verdadeiramente, a
reconhecer os nossos pecados, a vê-los absolvidos no Sacramento da Confissão, a
expiá-los com jejuns e penitências. Para que o braço da Justiça de Deus seja travado
por poucos, quando deveria cair sobre os muitos. Assim seja.
† Carlo Maria Viganò, Arcebispo
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«Tudo me é permitido, mas nem tudo é conveniente» (cf. 1Cor 6, 12).
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