Muitos dos fiéis, mesmo lúcidos e bem
orientados em relação à crise desencadeada pelo progressismo neomodernista na
Igreja Católica, tendem a esquecer a presença de um factor de grande
importância na outra grande crise a que estamos a assistir nestes dias: a do
conflito russo-ucraniano. Trata-se dos nossos irmãos católicos que pagaram
caro, com o próprio sangue e um imenso sofrimento, pela sua fidelidade à Sé de
Roma e a sua recusa em juntar-se às fileiras de uma igreja escravizada ao
Estado. Esses foram um modelo de amor à autêntica liberdade da Igreja e
deveriam constituir para nós um farol para nos orientar hoje, quando vemos
frequentemente o sentimento de liberdade da Igreja vacilar perante os poderes
fortes deste mundo, tanto no Ocidente como no Oriente.
Neste sentido, a Igreja Greco-Católica Ucraniana (mas também as Igrejas Rutena
e Latina) foi verdadeiramente um paradigma em tempos ainda recentes e não o
podemos esquecer. João Paulo II recordou-o na cerimónia de beatificação dos 25
mártires greco-católicos ucranianos a 27 de Junho de 2001: «“Ninguém tem
maior amor do que aquele que dá a vida pelos seus amigos” (Jo 15, 13). Esta
solene afirmação de Cristo ressoa entre nós, hoje, com particular eloquência,
enquanto proclamamos Beatos alguns filhos desta gloriosa Igreja de Lviv dos
Ucranianos. A maior parte deles foi morta por ódio à fé cristã. Alguns sofreram
o martírio em tempos não distantes e, entre os que se encontram presentes na
Divina Liturgia de hoje, não poucos os conheceram pessoalmente. Esta terra de Halychyna,
que ao longo da história viu o desenvolvimento da Igreja Greco-Católica
Ucraniana, foi coberta, como dizia o inesquecível Metropolita Josyp Slipyj, “por
montanhas de cadáveres e rios de sangue”».
O Estado russo, tanto na época czarista como na soviética, perseguiu
frequentemente esta Igreja católica unida a Roma, quando não a eliminou
formalmente, tentando integrá-la à força no Patriarcado Ortodoxo de Moscovo,
também conhecido como Igreja Ortodoxa Russa. A Igreja Ortodoxa Russa, por seu
lado, reivindica como seu “território canónico” todo o espaço ucraniano e de
outras nações vizinhas. Alguns teólogos católicos consideram esta tese pouco ortodoxa
e errada nas suas raízes, uma vez que o mandato de evangelizar todos os
povos, dado por Nosso Senhor aos Seus discípulos, é universal e não se pode
delimitar geograficamente nem identificar com realidades políticas temporais.
A Igreja Greco-Católica surgiu oficialmente em 1596, quando uma parte da actual
Ucrânia pertencia à commonwealth lituano-polaca, mas vários
historiadores greco-católicos demonstraram que, em tempos precedentes, a sua
Igreja nunca interrompeu as relações com os bispos de Roma.
Em 1945, o Secretário-Geral do Partido Comunista da Ucrânia, Nikita Khrushchev (mais
tarde chefe de toda a União Soviética), determinou a detenção do clero
greco-católico com a falsa acusação de colaboracionismo com o nazismo. Em 1946,
o governo estalinista, após infinitos vexames e perseguições, declarou a Igreja
Greco-Católica fora da lei (situação em que permaneceu até 1989), servindo-se
de uma estratégia diabólica. Uma minoria de padres greco-católicos não resistiu
à perseguição e às ofertas materiais bolcheviques, convocando um falso Sínodo,
em Lviv, que decretou a passagem de todos os fiéis, e mesmo de todos os imóveis
desta Igreja, para o Patriarcado de Moscovo, coisa que o poder soviético não tardou
a implementar de forma brutal. Muitos foram os eclesiásticos e os fiéis que resistiram e foram mortos pela repressão estatal soviética; outros acabaram por
ser deportados para campos de trabalhos forçados na Sibéria, como o Metropolita
Slipyj.
A acusação recorrente feita pelo poder comunista aos gregos-católicos da época
era a de fazer parte de uma igreja pró-nazi (apesar das fortes denúncias contra
o regime hitleriano, especialmente por dois dos principais expoentes da Igreja
Greco-Católica do século XX, o Metropolita Andrey Sheptytsky e o seu irmão, o arquimandrita
e mártir do comunismo Beato Klymentiy Sheptytsky) ou, pelo menos, de olhar
demasiado para o Ocidente, especialmente na época da monarquia dos Habsburgos,
que, de facto, os tinha protegido contra a ganância cesaropapista de Moscovo
(recorde-se que a Galícia, ou seja, a província ocidental da Ucrânia, fazia
parte do Império Austro-Húngaro).
Na realidade, o Patriarcado de Moscovo sempre temeu a capacidade de evangelização
dos povos eslavos por parte de uma Igreja que, embora unida a Roma, utiliza a
liturgia bizantina que, tão amada por esses povos, expressa, obviamente, a
universalidade e a riqueza da Igreja fundada por Nosso Senhor. O Metropolita
Hilarion, actual encarregado dos negócios estrangeiros do Patriarcado, em 2016,
protestava contra «as acções dos greco-católicos na Ucrânia e o proselitismo
dos missionários católicos no território canónico do Patriarcado de Moscovo»,
acrescentando, depois, que «a questão dos uniates [termo depreciativo
utilizado para indicar estes católicos de rito ortodoxo (sic) mas em comunhão
com o Papa] continua a ser uma ferida sangrenta, que impede a plena
normalização entre as duas Igrejas [católica e ortodoxa de obediência
moscovita, n.d.r.][1].
Efectivamente, esta Igreja Greco-Católica já tinha sido liquidada, em 1827, pelo
Czar Nicolau I. Em geral, também devido à liturgia bizantina, o império czarista
não era tolerante para com os greco-católicos, ao contrário, pelo menos em
certos momentos temporais, por exemplo sob Catarina, a Grande, do que fez com
os fiéis católicos de rito latino. Embora no período soviético ambos os ritos
católicos tenham sido brutalmente perseguidos, como demonstra o livro O Martírio
da Igreja Católica na Ucrânia, do sacerdote Paul Vyshkovskyy, OMI (Edizioni
Luci sull’Est, 2006).
A ameaça cesaropapista manifestou-se, mais uma vez, com força no passado dia 21
de Fevereiro, quando Vladimir Putin declarou, em apoio ao seu direito de
intervir na Ucrânia e sem dar provas concretas, que o actual governo ucraniano trabalha
para a «destruição» do Patriarcado de Moscovo na Ucrânia[2].
Estava provavelmente a referir-se, sobretudo, aos cristãos ortodoxos que estão
com aquela parte da Igreja Ortodoxa Ucraniana reconhecida pelo Patriarca de
Constantinopla: como não poderia voltar à mente dos greco-católicos e dos
latino-católicos aquela simbiose Estado-Igreja que lhes fez tanto mal? A
supremacia do Estado sobre a religião dominou a mentalidade do mundo cismático
durante muitos séculos. Ao longo dos séculos, a realidade moscovita tem sido
uma forte expressão desta mentalidade. O advogado Antonello de Oto, docente de
Direito Eclesiástico na Universidade de Bolonha, afirma que, para Putin, «o “escalpe”
ucraniano não representa apenas uma vitória militar e política, mas também a
resolução definitiva de um problema religioso e identitário»[3].
Por seu lado, o bem informado blogue The Pillar relatou a pronta adesão
do Patriarca de Moscovo às palavras do presidente russo, uma espécie de «justificação
teológica da invasão». O Patriarca reafirmou, de facto, a tese de um
território canónico que compreende «todas as Rússias, incluindo a Ucrânia»,
deixando claro que a sua solidariedade para com os cristãos da Ucrânia «significa
a aceitação da autoridade de Moscovo sobre a Igreja ucraniana». A 27 de
Fevereiro, dois dias após o início da guerra, o Patriarca Cirilo declarou: «Que
o Senhor preserve a terra russa. Quando digo “russa”, estou a utilizar a antiga
expressão da ‘Crónica de Nestor’: “A origem da terra russa”. Uma terra à qual a
Rússia, a Ucrânia, a Bielorrússia, outras tribos e povos pertencem hoje em dia. Que o Senhor preserve, então, a terra russa dos inimigos externos, da discórdia
interna, para que a unidade da nossa Igreja seja reforçada»[4].
Se, efectivamente, uma parte considerável da maioria ortodoxa na Ucrânia também
vê com grande receio a simbiose do Kremlin com o Patriarcado de Moscovo, como
podemos nós, católicos, ignorar a angústia que invade nestas horas os nossos
irmãos greco-católicos de rito bizantino, recordados de um martírio tão
recente?
E será que esta angústia não faz eco de que os 92,5% dos ucranianos que votaram
pela independência do seu país da Rússia, em 1991, também são testemunhas da
trágica experiência das décadas soviéticas?
Através de Tradizione, Famiglia, Proprietà
[1] https://www.agi.it/estero/patriarcato_mosca_chiesa_uniate_ferita_che_sanguina-492984/news/2016-02-05/.
[2] Peter Smith, How is
Russia-Ukraine war linked to Religion? – AP, 27 de Fevereiro de 2022.
[3] Antonello de Oto, Il fattore
religioso nella lotta russo-ucraina – Formiche, 28 de Fevereiro de 2022.
[4] https://www.pillarcatholic.com/p/moscow-patriarch-prays-for-unity?s=r.
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