Sobre as relações Igreja-Estado: a verdadeira mudança de época

Na relação entre o que costumava ser chamado de poder espiritual e poder temporal, nota-se hoje uma mudança substancial, que contrasta com a tradição da Igreja Católica desde a sua fundação até anteontem. A mudança é de considerável magnitude. Preparada há muito tempo, parece agora ser tacitamente aceite.      

Todos sabemos – mesmo não sendo especialistas de História da Igreja – que, ao longo dos séculos cristãos, o poder espiritual da Igreja Católica nunca havia aceitado ser colocado ao mesmo nível que o poder temporal do príncipe, quanto mais depender dele. De facto, episódios deste tipo ocorreram, mas foram anomalias, desvios temporários devido à fraqueza humana ou a contingências históricas.   

Jesus recorda a Pilatos que não teria nenhum poder se este não lhe tivesse sido dado do alto. Santo Ambrósio não permitiu que o Imperador Teodósio entrasse na igreja após o massacre de Tessalónica. Gregório VII excomungou e, depois, indultou o Imperador Henrique IV em Canossa. São Tomás disse que «em matéria espiritual deve-se obedecer ao papa, em matéria temporal é melhor obedecer ao príncipe, mas melhor ainda obedecer ao papa, que ocupa o topo das duas ordens». Dois outros Tomás – Beckett e Moro – não tergiversaram sobre a imoralidade dos seus soberanos. Quando os Estados modernos surgiram, os episcopados apelaram ao Papa para não permanecerem prisioneiros de igrejas nacionais, como a galicana.   

A Igreja do século XIX foi a principal contestatária da soberania absoluta do Estado moderno, numa luta sem limites. Durante os totalitarismos, representou, apesar das dificuldades e dos fracassos, uma reserva de liberdade fundada na verdade. A Igreja levantou sempre a sua voz, exercendo a sua própria acção específica sobre a vida política, comparável à acção da graça sobre a natureza e da fé sobre a razão. Tal acção é de uma outra ordem, uma ordem superior, mas a distinção entre as duas ordens não significa que esta acção não exista, ou que seja distante e indirecta. Significa antes que diz respeito ao temporal, mas com vista a um fim que não é temporal, um fim sem o qual o temporal não pode sequer ser o que é.          

Se agora tentarmos analisar a situação hodierna, podemos constatar que esta relação já não existe e que os dois poderes parecem coincidir. A dialéctica de séculos parece hoje ter terminado em concordismo. A Igreja já não levanta a sua voz para recordar ao poder político as suas obrigações para com a justiça e a verdadeira religião. Isto nem sequer acontece quando o príncipe aprova leis e implementa políticas que são desumanas e anticristãs na sua forma mais pura. Nenhum homem da Igreja se levanta hoje para contestar abertamente um chefe de governo, um governador regional, um presidente de câmara para confirmar as regras da justiça sobre questões radicais do bem e do mal. As Conferências Episcopais medeiam. Dialogam e convidam ao diálogo. Os bispos permanecem em silêncio e deixam que a falar sejam os comunicados maçadores da Conferência Episcopal. Os regimes políticos com muitos aspectos desumanos não são tocados pela hierarquia da Igreja. Os Conselhos das Conferências Episcopais Europeias (COMECE e CCEE) nunca emitem uma única declaração criticando as políticas das instituições supranacionais continentais. Mesmo as agendas das conferências, semanas sociais católicas e dias de reflexão são copiadas daquelas das instituições políticas, de modo que, hoje em dia, cada actividade de assembleia da Igreja se preocupa com as “transições” estabelecidas pelo poder político (e económico): as prioridades do príncipe são também as do poder espiritual.       

Nunca se tinha visto uma Igreja tão interligada com as instituições políticas, um poder espiritual tão à vontade nas relações com o poder temporal, atento a não perturbar e a cooperar. Devemos esquecer o dedo levantado ao céu de Frei Cristóforo: «Virá um dia…!».

A posição tomada pela Igreja em relação a COVID coroou, então, todo este quadro. Hoje, um católico é um bom católico quando está satisfeito com o mandato de sete anos de Mattarella, quando está disposto a dar a sua própria contribuição acrítica para as políticas anti-COVID e as famosas “transições”, quando trabalha para a realização dos objectivos da ONU para 2030, quando acredita na actual União Europeia e tem confiança na Presidência de Biden. Esquecia-me: ...e quando tem fé na ciência.           

Vista assim, a situação parece um pouco ridícula. Na verdade, é bastante grave. É a realização política da secularização, que o Padre Fabro definia com estas palavras: «passamos de um domínio do sagrado à invasão do profano na vida do sagrado e à expulsão do próprio sagrado»: Deus só nos pode ajudar se estiver confinado fora do mundo. Não vale a pena ser subtil e distinguir entre secularização, secularismo, laicidade e laicismo. Aqui é todo um modo que salta. Se fosse como funciona hoje, Santo Ambrósio teria de abrir uma mesa de discussão com Teodósio, Gregório VII teria de pedir desculpa a Henrique IV e Pio VII teria de estar satisfeito com a sua transferência para França por ordem de Napoleão.      

Stefano Fontana       

Através de La Nuova Bussola Quotidiana

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