Nascido em Mainz, na Alemanha, a 31
de Dezembro de 1947, o Cardeal Gerhard Ludwig Müller foi, entre 2012 e 2017,
Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, a mais importante das
congregações vaticanas. Depois de ter sido afastado, por Francisco, da Cúria
Romana, o Cardeal Müller tem vindo a tomar posições por muitos consideradas
contrárias ao rumo seguido pelo actual Pontificado. O portal Dies Iræ entrevistou, em exclusivo, o purpurado alemão, tendo sido
abordadas questões que tratam desde a acção pastoral de Müller até à forma como
vê a liturgia e o caos provocado pelo COVID-19.
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1. Eminência, permita-nos que reverentemente lhe agradeçamos por nos conceder
esta entrevista que, certamente, é há muito tempo esperada pelos nossos
leitores habituais. O que faz, neste momento, Vossa Eminência?
Como pastor e
teólogo, continuo a ser activo na pregação, no trabalho pastoral e na
investigação. Em Março, será publicado um livro sobre o Milagre da
Imortalidade. O que vem depois desta vida terrena?
2. Dos tempos em que Vossa Eminência foi Prefeito da Sagrada Congregação
para a Doutrina da Fé, nomeadamente entre 2012 e 2017, comparando com estes
últimos anos fora da Cúria Romana, que diferenças notou em contacto com fiéis,
organizações e associações católicas mundo fora? Que observações tira Vossa
Eminência desses contactos relativamente ao período como Prefeito?
Muito frequentemente sou convidado em diferentes países para palestras, retiros
e para colaborar em grandes projectos. De acordo com a natureza humana, aqueles
que anteriormente prometeram a si próprios atenção e vantagens da proximidade
com o Prefeito da mais importante Congregação, mantêm-se afastados. Mas somos e
continuamos católicos porque somos baptizados em nome do Deus Trino e, por
isso, incorporados na Igreja Una, Santa, Católica e Apostólica.
3. A propósito dos Motu Proprio Summorum Pontificum, do Papa Bento
XVI, e Traditionis Custodes, do Papa Francisco, temos o relato fidedigno
de alguém que viveu e está a viver os seus desenvolvimentos. Vem da América do
Sul, concretamente do Brasil. A Santa Missa vetus ordo local tinha, em
2010, entre 10 a 20 fiéis. Hoje, a Capelania tridentina tem mais de 600 fiéis e
está num florescimento rápido, firme e constante. A média de idade dos seus
devotos ronda os 25 anos. Por que motivo perseguir um rito que tem atraído
tantas conversões, sobretudo de jovens?
Ninguém compreende porque é que esta questão está agora a ser trazida à
ribalta, como se a unidade da Igreja e a liturgia dependessem da supressão da
Missa no rito extraordinário. O regulamento anterior foi bem pensado em termos
teológicos e pastorais. Espero que, na prática, seja feito de forma sensata e
com respeito. Acima de tudo, seria importante ultrapassar os abusos que não
poucos justificam com o novus ordo da Missa e, ao fazê-lo, aplicar a
teologia da liturgia tal como desdobrada em Sacrosanctum Concilium, a
constituição litúrgica do Vaticano II.
4. É por muitos considerado um Prelado que, após ter sido afastado da
liderança da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, tem vindo a tomar
posturas hostis em relação à Santa Sé e, em concreto, ao Pontífice reinante.
Como responderia a estas críticas?
Uma afirmação tão disparatada só pode vir de ignorantes teológicos. Como bispo
católico e cardeal romano, estou do lado do Papa por princípio. Fiz, sem
dúvida, um trabalho melhor do que qualquer outro teólogo católico de hoje,
justificando a primazia e defendendo-a contra os seus críticos entre os
protestantes, os ortodoxos e os liberais anti-clericais. Deve-se ler primeiro o
meu livro de 620 páginas: El Papa, misión y cometido (BAC, Madrid 2018).
Respondo livremente a perguntas de católicos preocupados. Sou de opinião que
bons argumentos teológicos ajudam o Papa Francisco mais do que falsos amigos
com os seus elogios néscios.
5. Numa recente entrevista, Vossa Eminência considerou que o actual “estado
pandémico” beneficia personagens como George Soros e Bill Gates, promovendo
aquilo que caracteriza como um «estado de vigilância global». De que
lado deve estar a Igreja e a sua cabeça visível?
Pode-se ler em todo o lado que, durante a pandemia, os poucos multimilionários
da Big Tech/Big Pharma se tornaram enormemente mais ricos e milhões de pessoas,
especialmente no Terceiro Mundo, foram apanhadas na miséria. Se é tão mau para
toda a humanidade, o fardo deve ser partilhado igualmente. Com a teologia da
libertação, sempre advoguei a opção pelos pobres. Existe uma má forma de
globalismo onde apenas um punhado de pessoas ricas, poderosas e belas
determinam o que as massas têm de pensar e falar, consumir, quando as crianças
têm de nascer, abortar e quando pessoas idosas e doentes têm de morrer por
eutanásia. As belas palavras dos seus programas não me convencem, apenas se
mostrarem actos e reconhecerem realmente cada ser humano como uma pessoa livre
e digna criada por Deus, então as coisas podem melhorar no mundo, no sentido
dos ensinamentos sociais católicos.
6. Em Portugal, a título de exemplo, os Bispos católicos decretaram a
suspensão das Missas antes mesmo de o Governo socialista decretar medidas
restritivas aquando do surgimento, em meados de 2020, de casos COVID-19 em
território nacional. Foram longos os meses em que os fiéis ficaram privados dos
Sacramentos. Olhando para o passado glorioso da Igreja, temos muitos exemplos
edificantes de santos, e não só, que doaram a sua vida para assistir física e
espiritualmente os fiéis que padeciam de doenças contagiosas, como o caso de
São Roque, São Carlos Borromeu, São Luís Gonzaga ou Santa Virgínia Centurione
Bracelli. Hoje, pelo contrário, vemos uma Igreja retraída e alinhada com o
sistema político vigente. Vale tudo em nome da saúde do corpo?
Uma coisa são as medidas necessárias para a protecção contra infecções e para a
cura. Os bispos não têm o direito de reter os Sacramentos aos católicos e de
fechar as igrejas. Isso é contra a vontade de Deus. Mas a Igreja tem um mandato
de Deus para estar presente para as pessoas que vivem e morrem. Não somos
mercenários, mas bons pastores que, como Jesus, damos a vida para que os fiéis
a nós confiados possam experimentar a presença e o amor de Deus. Certamente
trata-se de toda a pessoa, que não pode ser dividida em corpo e alma. Mas
existe uma salvação temporal – transitória e eterna – imperecível. E a Igreja,
isto é, a totalidade dos crentes com os seus pastores nomeados por Deus, serve
a salvação eterna, que já começa agora com o Baptismo e o seguimento de Cristo.
7. Em 2019, apresentou um documento, a
que deu o nome de “Declaração de Fé”, que terminava do seguinte modo: «Que
Maria, Mãe de Deus, implore a graça de nos apegarmos à confissão da verdade de
Jesus Cristo sem vacilar». Voltados dois anos, considera que este seu
manifesto surtiu algum efeito prático na Igreja?
Não podemos medi-lo quantitativamente. Muitos amigos cristãos escreveram-me e
agradeceram-me por isso. Também não se trata de mim, mas da fé da Igreja na
qual somos baptizados. Apenas sublinhei os pontos centrais e mostrei a forma
como Jesus nos precede.
8. Na perspectiva de Vossa Eminência, quais devem ser as prioridades da
Igreja num momento em que assistimos a uma Europa cada vez mais afastada de
Deus e dos seus ideais fundadores?
Jesus diz aos Seus discípulos de então e de agora: «Eu sou a luz do mundo.
Quem me segue não andará nas trevas, mas terá a luz da vida» (Jo 8, 12).
Deus, em Cristo, é a salvação do mundo. Ele é «o Caminho, a Verdade e a Vida»
(Jo 14, 6). Só Deus pode salvar-nos e nenhum outro poder no mundo.
9. Quando teremos a honra de receber Vossa Eminência em Portugal?
Já estive em Portugal muitas vezes, especialmente em Fátima. E, se Deus quiser,
aí voltarei para a pregação da Palavra, para a celebração dos Santos Mistérios
ou para uma conversa sobre a verdade e a beleza da fé cristã.
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«Tudo me é permitido, mas nem tudo é conveniente» (cf. 1Cor 6, 12).
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