Durante muitos anos, considerou-se uma lenda o
pacto secreto entre o Vaticano e a URSS, no Concílio Vaticano II, para não
condenar o comunismo. Mas, hoje, já quase ninguém o nega. Como foi possível
algo tão incompreensível?
O pacto estava ligado ao compromisso de não condenar o comunismo em troca da
permissão para que representantes qualificados do Patriarcado de Moscovo
participassem no Concílio. Não escapava a ninguém que, na altura, a Igreja
Ortodoxa Russa estava profundamente comprometida com o regime soviético. Hoje, efectivamente,
pode parecer pouco compreensível, mas nas grandes manobras geopolíticas daquele
difícil período da Guerra Fria, este pacto fazia muito sentido para a URSS, que
se encontrava em plena expansão territorial e cultural. Dois blocos disputavam
a hegemonia mundial e a Igreja Católica tinha uma influência decisiva, muito
maior do que a que tem actualmente, sobre a opinião pública ocidental. O seu
silêncio sobre o comunismo significaria uma espécie de passaporte para que este
pudesse continuar a forte penetração que estava a levar a cabo através de
guerrilhas e guerras no terceiro mundo e, especialmente no primeiro mundo, no
campo da cultura e da educação em geral.
Como teve origem este misterioso pacto e por iniciativa de quem se
desenvolveu?
Eu não sei quem disse a primeira palavra, mas ambas as partes tinham
interesse nele. Já falei do interesse que tinham os soviéticos. Pela sua parte,
havia uma mentalidade optimista em vastos sectores da Igreja de que a
estratégia do diálogo tinha encontrado compreensão no “bom coração” dos seus
adversários, que poderiam, eventualmente, corresponder a tão boa vontade
relaxando as medidas repressivas contra os crentes nos países dominados pelo
comunismo ateísta. Eram os anos em que se encaminhava a famosa “Ostpolitik vaticana”,
cuja figura de proa nos anos sucessivos passou a ser o futuro Cardeal
Secretário de Estado Agostino Casaroli, e que, segundo outro cardeal, o
eslovaco Ján Chryzostom Korec, trouxe resultados nefastos para a Igreja. O
Cardeal Korec chegou a afirmar que a Igreja clandestina, que era florescente na
prova, foi «vendida» pela Ospolitik vaticana em troca de «promessas
vagas e incertas dos comunistas», tudo isto em resultado do silêncio sobre
o comunismo por parte do Concílio. Um silêncio que Plinio Corrêa de Oliveira,
na sua conhecida declaração de resistência à Ostpolitik vaticana, descreveu
como «enigmático, desconcertante, espantoso e apocalipticamente trágico»,
o que, devido às suas consequências práticas, faria com que o Concílio entrasse
para a História como «a-pastoral» por excelência.
Que consequências “a-pastorais” teve na Igreja este silêncio conciliar?
Talvez a mais grave tenha sido a propagação da Teologia da Libertação nas
suas diversas componentes “teologia da luta de classes”, “teologia do povo”, “teologia
indigenista”, etc. Em países até então massivamente católicos, esta pregação nociva
teve dois efeitos: secularizar uma parte dos fiéis, mudando a mensagem
evangélica de salvação por um ideal de lutas puramente políticas e sociais. Da
outra parte – e aqui falamos de milhões e milhões de pessoas –, favoreceu a
emigração para as comunidades e seitas protestantes e neoprotestantes que
rapidamente substituíram a Igreja Católica Romana, oferecendo satisfação aos
anseios espirituais dessas multidões. Este último facto foi categoricamente
denunciado, no Brasil, pelo Papa Bento XVI. E pensar que, apesar dessa
devastação, há, hoje, na Igreja, quem continue a glorificar a teologia da
libertação…
A URSS obtinha muito, em plena Guerra Fria, enquanto o Vaticano obtinha
muito pouco, para além da presença dos ortodoxos. Não era um pacto muito
desequilibrado?
É verdade. Para além da “estratégia de diálogo”, ao Vaticano interessava
também um aspecto estritamente religioso: promover com as comunidades cristãs
aquilo a que o Cardeal Walter Kasper chamou o ecumenismo dos caminhos paralelos
de uma única “Igreja de Cristo” que marcha, cada uma no seu próprio caminho, rumo
à Segunda Vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo. Este ecumenismo dos caminhos
paralelos devia substituir o “ecumenismo da convergência”, praticado até então,
no qual os cristãos a-católicos, como se dizia, são caridosamente convidados a
convergir na Igreja Católica para formar, como diz São João, «um só rebanho e
um só pastor».
Mas também nesta frente, vemos um fracasso retumbante das ilusões
pós-conciliares. Enquanto as antigas denominações protestantes caminham para
uma completa autodissolução e insignificância e a grande maioria dos ortodoxos
orientais estão relutantes em dialogar com Roma, o vasto mundo novo dos neoevangélicos
e pentecostais permanece como a única matéria-prima para a continuação do
diálogo ecuménico. Mas desta vez são os expoentes católicos do ecumenismo
pós-conciliar que se recusam a dialogar com eles, devido à frequente oposição de
estes se curvarem ante os “sinais dos tempos” que aqueles vêem nas mudanças da
sociedade secularizada do Ocidente.
Na sua obra de referência sobre o Concílio, o Professor de Mattei salienta que
João XXIII se deixou manipular pela estratégia soviética, que utilizava o “pacifismo”
como argumento principal. Também a encíclica Pacem in Terris, de João
XXIII, foi polémica porque parece ser muito compreensiva com o comunismo e a
URSS. O que pensa?
Creio que o Professor de Mattei tem razão. O Papa João XXIII tinha uma
marcada capacidade emotiva e deixou-se impressionar pelos comunistas de “bom
coração”, especialmente Nikita Khrushchev, que lhe enviou um habilíssimo telegrama
de felicitações quando o Papa cumpriu os seus oitenta anos. A este facto,
seguiram-se muitos outros, como, por exemplo, a já referida delegação de
ortodoxos russos autorizada pelo Partido para vir ao Concílio.
Talvez o mais triste de tudo é que, com esta surpreendente atitude, se
minimizava quase por completo as advertências da Santíssima Virgem, em Fátima,
de que a Rússia espalharia os seus erros pelo mundo. Não acha?
Efectivamente. A Irmã Lúcia de Fátima insistia que o Terceiro Segredo
deveria ser divulgado em 1960. Mas como é que isto poderia ser feito? Falava-se
lá de tremendas perseguições à Igreja e isto estava ligado ao que já se sabia
sobre os “erros da Rússia” difundidos por todo o mundo. Ora bem, em 1960,
apesar da intensidade da Guerra Fria conduzida pelos soviéticos, três figuras
de líderes irradiavam um grande optimismo: o Papa João, o Presidente americano
Kennedy, e o gorducho e sorridente Khrushchev, que, apesar do seu cordial
telegrama ao Papa, tinha perseguido brutalmente os católicos na Ucrânia durante
o seu anterior mandato naquela nação. A Mensagem da Virgem, em Fátima, estava
francamente “desafinada” com o espírito optimista que a propaganda dos meios de
comunicação social e as grandes figuras públicas da época representavam.
Como se puderam ignorar as vozes de tantos bispos de todo o mundo,
especialmente daqueles que procediam de países que sofriam na própria pele as
atrocidades do comunismo?
Um dia, diante o Juiz Divino, saberemos por que motivo puderam ser
abandonados à sua sorte naqueles anos cardeais como Mindszenty, Korec, Świątek,
episcopados inteiros como o romeno, o ucraniano e outros. É verdade que, nas
últimas décadas, muitos expoentes deste martírio in odium fidei foram
reconhecidos e ascenderam à glória dos altares. Mas faltam muitos naquela
lista, enquanto, hoje em dia, parecem ser favoritos alguns duvidosos mártires da
“teologia da libertação”, que morreram atrozmente, mas que estavam
comprometidos com causas políticas não estritamente ligadas à Fé.
Através
de InfoCatólica/Javier Navascués
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