12. Senhor Embaixador, gostaria de
lhe perguntar como viveu, se quiser comentar, 20 anos numa prisão comunista.
Pode descrever para o público português como foram aqueles 20 anos dentro de
uma prisão do regime castrista?
Foram 22 anos. Foram
muitíssimos. E é muito difícil numa entrevista relatar o que aconteceu nesses
22 anos. Mas, de uma maneira geral, devo dizer que o tratamento dentro das
prisões políticas em Cuba foi um tratamento muito degradante. Degradante,
humilhante, com a negação de todos e cada um dos direitos humanos. A Declaração
dos Direitos Humanos, como demonstrámos anos depois em Genebra, e como disse o
então Embaixador Henry Steel, representando a Inglaterra: “Em Cuba, todos e
cada um dos direitos humanos são violados diariamente”.
A vida na prisão era uma vida debaixo de uma constante repressão. Torturas,
isolamentos, trabalhos forçados, negação de visitas familiares. Em 22 anos,
tive apenas 12 visitas, porque a maior parte da minha condenação foi passada
rebeldemente, incomunicável em celas de castigo durante anos.
Os campos de trabalhos forçados foram um verdadeiro inferno. Centenas de
companheiros foram assassinados nos campos de trabalho. Outras centenas foram
mutilados por disparos, por facões, por espancamentos, e esse tremendo terror
levou muitos deles, para não terem que ir os campos de extermínio, donde não
sabíamos se voltaríamos vivos, a agredir-se a si próprios. Lembro-me que, numa
madrugada, nas circulares, os nossos médicos, os médicos presos políticos,
faziam uma lista dos doentes e vinha o médico comunista, às cinco ou às seis
horas da manhã, e verificava aqueles presos doentes que tínhamos colocado
nessa lista e que não estavam em condições de trabalhar. Alguns com 39 ou 40
graus de febre, com ataques de asma, com diarreias, etc. Mas o comunista não se
fiava disso. Certa ocasião, a um rapaz que estava muito doente, com febre muito
alta, o médico comunista, chamado Agramonte, disse-lhe, com escárnio, que a única
maneira de se livrar de ir para o campo de trabalho seria cortar um dedo. Dez
minutos depois, o paciente voltou com um cartucho de papel ensanguentado,
abriu-o e atirou o dedo para cima da mesa. O médico comunista fugiu, dizendo que
éramos loucos.
E aquele terror de ir para os campos de trabalhos forçados levou muitos dos
nossos companheiros a agredirem-se fisicamente para escapar àqueles pesadelos
horríveis, porque saíam de manhã e não sabiam se voltariam bem. A primeira
coisa que fazíamos quando as equipas de trabalho voltavam era comunicar-nos
entre os quatro edifícios para avisar, dando o nome do companheiro que havia sido
mutilado ou assassinado. Digo-lhe, em relação a alguns daqueles golpes com
facão nas costas, que eles achatavam o facão nas costas de tal forma que a pele
ficava agarrada à lâmina, como se estivessem a bater com um ferro em brasa,
porque nos obrigavam a trabalhar sem camisa, para que os mosquitos nos picassem
ainda mais e para que nos comessem vivos.
Numa ocasião, estávamos a colher ervas daninhas com uma picareta. Os guardas
haviam espancado muitos de nós. O prisioneiro que trabalhava ao meu lado estava
visivelmente alterado e disse-me: “Não aguento mais, vou cravar a picareta no
meu pé”. E eu disse-lhe: “Não faças isso, por favor. Reza, resiste, Deus vai-te
ajudar a sair disto”. Eu só podia falar com ele em voz baixa, entredentes,
porque se os guardas vissem que estávamos a conversar, batiam-nos. E olhe como
seria… Ele levantou a picareta muito alto, como que para bater com mais força,
e entrou-lhe por cima da bota e a ponta afiada saiu pela sola, que imediatamente
ficou vermelha de sangue. E, com isso, ele passou vários meses sem ir para os
campos de trabalho.
Em Outubro de 1961, três dos meus companheiros e eu conseguimos fugir da prisão
de Isla de Pinos, no Sul de Cuba e conhecida como Ilha do Tesouro. Foi a
primeira vez na história desde 1935, ano em que foi inaugurada, que daquela
prisão conseguiam fugir alguns reclusos.
Aqueles que se haviam comprometido a ir-nos buscar num barco a um ponto
combinado junto da costa, não compareceram porque soubemos depois que eles
achavam que era impossível fugir daquela prisão. Por razões de segurança, nunca
contámos aos que nos iam buscar como iríamos fugir. Saímos disfarçados de
militares por dentro do quartel da guarnição militar, saindo pelo fundo e
passando por baixo de uma trincheira onde havia um guarda que tratava de uma
metralhadora. Durante os dois dias em que esperámos no literal, prenderam-nos
e levaram-nos para as celas de castigo da prisão.
E ao guarda que tratava daquela metralhadora, como castigo, enviaram-no para nos
vigiar nas celas. O tecto das celas era uma grande malha de aço. Os guardas caminhavam
por cima dela e viam-nos por baixo. Batiam-nos com uma vara de madeira para nos
impedir de dormir, eram as famosas “varas de Ho Chi Minh”. O guarda que nos odiava,
por vingança, ia onde estavam os presos comuns e pedia-lhes que enchessem um
balde com urina e excrementos. Mexia-os, subia até ao tecto da cela e despejava
os excrementos por cima de nós. Eu sei o sabor que têm os excrementos de outros
homens porque tive que os tirar do meu rosto, da minha boca... e não tinha água
para me limpar.
Nas celas fechadas com tijolos da prisão de Boniato, na província de Oriente, estivemos
anos sem ver qualquer luz artificial ou luz solar. Alguns de nós tomámos
precauções. Por exemplo, a minha cela ficava voltada para Este e eu, muito
cedo, punha um olho e, depois, o outro em cada um dos pequenos orifícios que
havia para olhar para fora.
Houve um prisioneiro nosso que não olhava pelos buraquinhos. Naquela escuridão,
as pupilas perdem o reflexo de contrair-se. Durante anos e anos. A nós,
que olhávamos pelos buraquinhos, as pupilas contraíam-se. Mas ele, não, usava óculos,
óculos escuros, como se põe às pessoas quando lhes dilatam as pupilas ao fazer
um exame ocular. As suas pupilas perderam a capacidade de contrair-se.
Os nossos companheiros presos que eram médicos davam-nos conselhos para nos acalmarmos.
Quando se está numa cela, é claro que aparece uma série de dores e sintomas que
nunca se sentiu na vida. Por exemplo, surgem dores no peito e fica-se assustado
e preocupado. E o médico dizia-nos: “Quando sentirem dores no peito, respirem
profundamente. E se a dor piorar, não se preocupem, não tem nada que ver com o
coração. Porque o sistema respiratório não tem nada que ver com o sistema
circulatório. Se o respirar fundo aumenta a dor, é porque têm um gás, algo
assim, mas não tem nada que ver com o coração.
Houve uma altura em que os comunistas queriam vestir os presos políticos com o
mesmo tipo de uniforme que usavam os criminosos comuns e os reabilitados. Assim
diriam que já não havia presos políticos. E, no meio de toda aquela violência,
iam e vinham, cela por cela, duas vezes por dia, e perguntavam: “Vais vestir a
roupa azul?”. “Não!”, respondíamos, e começavam a bater-nos com madeiras, com
as baionetas, com cabos e com correntes embainhadas em pedaços de mangueiras.
Quando terminava, vinha um militar do Ministério do Interior com um enfermeiro
e um carrinho de primeiros socorros que continha água oxigenada, curativos, mercurocromo,
etc. E se, por exemplo, o prisioneiro tinha a cabeça a sangrar, o enfermeiro cosia-lhe
a ferida, um pouco de mercurocromo e umas gazes com esparadrapo.
E, no dia seguinte, esse oficial do Ministério do Interior punha-se no corredor
e gritava: “Para que vejam que não somos tão maus como dizem, ordenei à
guarnição que, se algum de vós for atingido, ferido na cabeça e vos colocarem uma
ligadura, que à tarde vos batam de novo por cima daquela ligadura para que não digam
que vos magoamos duas vezes num dia. E eu faço isso porque sou uma pessoa muito
boa”.
Toda aquela tortura, todo aquele isolamento, a greve de fome... A maior que
fizemos foram 36 dias, mas a maior de todas foi imposta por eles, 46 dias, para
nos tentar obrigar a usar a roupa de reabilitados. Quando os dois primeiros
morreram de pura desnutrição, desistiram porque sabiam que continuaríamos a
morrer sem desistir.
Essa era a chave de tudo, ou seja, se aceitávamos o plano de reabilitação, eles
imediatamente tiravam-nos, davam-nos banho, davam-nos uma roupa limpa, mandavam
ir buscar a família e diziam que podíamos ir com eles. E deixavam que o
prisioneiro fosse um fim-de-semana com a sua família. A resistência era
completamente rompida.
Mas, para mim, aceitar isso seria um suicídio espiritual. Eu nunca teria
assinado aquele papel que dizia que toda a minha vida anterior tinha sido um
erro, que os valores em que acreditava eram valores falsos. Que Deus não
existia, que essa era uma crença obscurantista do passado. E isso, para mim,
teria sido o fim totalmente como ser humano.
Muitos dos meus companheiros pensaram que poderiam assimilar essa situação e
assinaram esse papel. Muitos deles fracassaram totalmente, quando saíram, nas
suas vidas, com as suas famílias.
Porque se rompeu algo dentro de nós que acreditamos em Deus e temos essa regra
inflexível, e os comunistas sabem disso.
Quando eu já tinha passado 15 anos na prisão, veio um oficial e levaram-me para
um quarto da prisão de La Cabaña. Naquele momento, o oficial disse-me: “Olha,
estamos aqui tu e eu. Não precisas de assinar nenhum papel. Mas se me disseres
oralmente, apenas oralmente, que estás errado e que nós temos razão, em 48
horas devolvemos-te a liberdade”. Disse-me: “Arrisca! Não te estou a dizer
daqui a um mês ou a duas semanas, estou-te a dizer depois de amanhã. A única
coisa que tens de me dizer é que tu estás errado e nós temos a razão. Não
precisas de assinar nada. Olha, não estamos a filmar nem nada, apenas tu e eu”. Respondi-lhe: “Coronel, é verdade que aqui estamos eu e o senhor, mas se eu o
admitisse, nunca mais poderia olhar a minha mulher e os meus filhos nos olhos. Sabe
porquê? Porque quem está errado é o senhor”. Levantou-se e disse-me: “Tu estás
é louco”. E foi-se embora.
Lembrem-se que os primeiros cristãos também tinham esposa e filhos, e deixaram-se
ser devorados por feras ao invés de negar a Deus, e que esse sacrifício para
muitos teria parecido inútil e impraticável, mas, graças a eles, existem os valores
cristãos. Sofreram, ganharam e, graças a eles, sobre os valores que defenderam,
construiu-se a maior civilização que a humanidade já conheceu: a civilização
cristã! Os comunistas conheciam perfeitamente aquela regra que tínhamos e sabiam que,
se alguém a rompesse, já estava tudo feito.
Havia um escritório na prisão de La Cabaña e um de nós conseguiu arrombar a
fechadura. Nesse escritório tinham a revista Moncada, que era o órgão
oficial do Ministério do Interior. E havia um artigo, que falava sobre os
prisioneiros que nos revelávamos, dizendo que éramos recalcitrantes, persistentes,
que foram usados todos os métodos possíveis de repressão e, ainda assim, permanecíamos
nas nossas posições, etc. E veja como acabava: dizia que a revolução precisava de
homens como estes aqui. Ou seja, eles próprios davam-se conta da importância de resistir na luta e isso
foi um orgulho tremendo para nós.
Eu estava numa das celas de castigo quando foi lançado, no exterior, o meu
primeiro livro, chamado “Da minha cadeira de rodas”, que era um livro de poesias,
porque eu escrevi no papel de cigarro. O papel de cigarro colocava-se na água
para descolar, escrevia-se e, por fim, enrolava-se. Contrabandeei 20 exemplares
desse livro, mas apenas um chegou à minha esposa, mas foi o suficiente.
Depois, saiu o segundo, chamado “O coração com que vivo”, que era de poesia e um
conto curto. Neste livro denunciava mais as torturas, o massacre de Boniato.
Porque tínhamos um religioso, Gerardo González, a quem chamávamos de Irmão da
Fé, que, quando os comunistas nos batiam, levantava sempre os braços ao Céu e
dizia: “Perdoai-lhes, Senhor, porque não sabem o que fazem”. Vinha todos os
dias buscar-nos para a oração, levantava-nos fisicamente e dizia: “Irmão, vem,
vamos rezar”. Um dia, os militares vieram espancar um prisioneiro e esse Irmão
da Fé colocou-se entre o militar e o prisioneiro que estava doente. Levantou
os braços para o Céu e, com a cabeça erguida, começou a dizer: “Perdoai-lhes,
Senhor, porque não sabem o que fazem”, mas quase não terminou a frase porque o
Tenente Raúl Pérez de la Rosa disparou contra ele o carregador completo da
metralhadora que levava e quase lhe cortou o pescoço com as rajadas das balas...
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