«Zelus domus tuæ comedit me»[1] (O
zelo pela Vossa casa me consome). Hoje, mais do que em outros tempos, as piíssimas
palavras do rei David retomam todo o seu vigor na defesa que um Católico deve exercer
com relação ao património imemorial da venerável Liturgia Romana. O tabernáculo
do Altíssimo, a Domus Dei (casa de Deus), o lugar dos “santíssimos”,
estabelecido sobre o alicerce da doutrina Católica e do visível ritual,
verdadeiro pontífice entre a terra e os céus, preservado sobre a rocha firme dos
sucessores de São Pedro pela sua Fé ortodoxa, é, hoje, no período
contemporâneo, misteriosamente abalado e vilipendiado por aquele que deveria
ser o seu mais acérrimo defensor.
Eis que o Sumo Sacerdote do Novo Testamento rasga as suas vestes já não diante
do Messias, mas do próprio Espírito Santo, terceira pessoa da Santíssima
Trindade, arrogando-se no direito de crucificar o mais sublime património
espiritual que os céus imanaram através de fórmulas imemoriais e, finalmente,
canonizadas no Concílio de Trento. São Pio V, de venerável memória, diante dos
hereges protestantes e da sua pertinácia, estabelecia, em perpetuidade, na sua
bula Quo Primum Tempore, que: «a fim de que todos, e em todos os
lugares, adoptem e observem as tradições da Santa Igreja Romana, Mãe e Mestra
de todas as Igrejas, decretamos e ordenamos que a Missa, no futuro e para
sempre, não seja cantada nem rezada de modo diferente do que esta, conforme o
Missal publicado por Nós, em todas as Igrejas […]»[2]. Contraditório
a este venerável documento, e utilizando uma expressão em voga, é o cerco
sanitário que Francisco pretende estabelecer ao culto ancestral que recebemos
de geração em geração e confirmado pela Cátedra da verdade.
Pela sua contumácia e escandalosa manifestação de impiedade desde o reinado de
João XXIII até Francisco, os fiéis eleitos de Deus verificam o contínuo ataque
destes pontífices ao verdadeiro culto e, por consequência, à doutrina católica[3]. O Missal Romano
que desde Pio XII, sobretudo na sua infeliz promulgação da nova Semana Santa[4], que se
oficializara, em 1955, imbuída de ensaios e experiências de raiz modernista,
bem como a reforma de 1962, que primou pelo desmantelar de grandes,
antiquíssimas e veneradas oitavas, da modificação perniciosa do Cânone Romano
com a introdução de São José, a redução dos sufrágios e orações, e uma clara
intenção de simplificar e apoucar a majestade do culto de Deus, representa, ele
próprio, o início da ofensa ao verdadeiro culto e Sacrifício do Altar, cujas
ressalvas justas e que, apesar de não serem suficientes para aclamar a sua
ilicitude, não devem, e aqui sim, obrigar qualquer sacerdote ou fiel a seguir
as suas rubricas, usos ou costumes.
«Não sejamos como Caim, que pertencia ao Maligno e matou o seu irmão. E por que
o matou? Porque as suas obras eram más e as do seu irmão eram justas»[5]. O
sacrifício de Caim não agradou a Majestade dos Céus, contudo, louvou Deus a
Abel, seu irmão, porque oferecera um bom e louvável sacrifício. Deste modo, de
rosto enraivecido, Caim matara a seu irmão, do mesmo modo que Francisco, pelo
menos o depreendemos no tom do seu Motu Poprio, irritado pelos bons frutos do
bom e agradável Sacrifício[6], parece
querer aniquilar ou, quando muito, sufocar aqueles que sacrificam a Deus em «Espírito
e Verdade».
Não pretendemos com esta breve exposição trazer à colação as longas discussões
sobre as quais demonstrámos a nossa já publica manifestação, seja dos erros do
Concílio Vaticano II, ao qual reiteramos a nossa não adesão, seja do Novus
Ordo Missæ, ao qual não reconhecemos licitude. Este é, sobretudo, um apelo
às comunidades ditas tradicionais e à estimada Fraternidade Sacerdotal de São
Pio X, que, desde o início da virtuosa reacção do seu fundador, o Arcebispo
Marcel Lefebvre, teve por bem alertar dos perigos de uma submissão às
autoridades liberais que ocupam desde aquele momento o Vaticano e as sedes
episcopais na maioria do orbe eclesiástico.
Soaram, portanto, os alarmes para uma firme e concreta resistência não só pelo
estandarte do ritual católico[7], mas por uma
intransigente defesa da doutrina milenar contra os erros do último Concílio do Vaticano
e do magistério dos pontífices desde João XXIII a Francisco. Penso que este
será o ponto fundamental de reflexão para todos aqueles movimentos, sacerdotes
e institutos que, aqui chegados, poderão verificar o fracasso e a fragilidade
da hermenêutica de Bento XVI, e da sua irrealista “reforma da reforma”[8].
Neste sentido, queremos, igualmente, apelar para a própria Fraternidade fundada
pelo “Arcebispo de ferro”. Vemos que neste documento de Francisco há uma
insistência no uso do Missal de 1962 e do vernáculo[9], profanando
a celebração dos santos mistérios ao colocar ao lado da augusta língua latina
um “farrapo vulgar” que diminui o mistério e a sacralidade devida inteiramente ao
Criador.
Que sentido faz continuar o uso de um missal de quem vós próprios (FSSPX), por
justificáveis e compreensíveis razões, não reconheceis como santo[10]?
Curiosamente, apresenta-se a astuta menção do missal de “São João XXIII”, como
a menos mal, ainda que desagradável, à Roma Modernista, mas que fazem questão
de impor já desde o Summorum Pontificum. Se é certo que D. Marcel
Lefebvre, por uma sobrenatural prudência e estima pela comunhão eclesial, se
decidiu por uniformizar a Fraternidade com os manuais de 1962, passado o seu
tempo e verificando, já de muito longe, o problema da revolução litúrgica[11], não seria
sensato reconsiderar ficar com as boas e salutares rubricas do vosso patrono, o
grande São Pio X?
O rigor e a dignidade da liturgia do Antigo Testamento, que outorgou o próprio
Deus a Moisés e a Aarão, meros símbolos do Santíssimo Sacrifício de Cristo no
Altar, exigem que olhemos mais atentamente para o rigor que o Espírito Santo
durante séculos preservou por ilustres e devotos Pastores, bem como por santos
doutores, no que concerne a todos os veneráveis ritos da Igreja e, muito
especialmente, ao Romano, aquele de São Pedro. «Não ocorrerá no pensamento de
alguém, que o Salvador pudesse deixar a sua Igreja privada deste culto supremo
de latria, sem o qual ficaria aquém do judaísmo, cujos sacrifícios
celebravam-se com tanta magnificência, que a Nobreza gentílica vinha de países
longínquos para apreciar esse espectáculo, e que os reis pagãos contribuíam,
algumas vezes, para as despesas dos mesmos»[12].
Não temos inocência ao saber de antemão que tais decisões, tanto de um lado
como do outro, não serão fáceis ou compreendidas da mesma forma, mas a nossa
humilde exposição e apelo da grave situação que vivemos exige que a façamos pública.
Como são solenes as advertências aos sacerdotes que entram no “Santo dos
Santos” (Sancta Sanctorum) para oferecer o Sacrifício a Deus Todo-Poderoso.
«Maledictus qui facit opus Domini fraudulenter»[13] (Maldito
aquele que faz a obra do Senhor com negligência).
Eduardo Almeida
[1] Sl. LXVIII, 10.
[2] PIO, Papa V – Quo Primum Tempore.
1570.
[3] Lex orandi, Lex Credendi.
[4]Ver: https://www.youtube.com/watch?v=D_AHtB5T4FY&list=PLt9k36wF_V_NeZXJiz4SwOHOuSR_jQhQM
[5] I São João, III, 12.
[6] Este infinitamente mais digno que o de Abel,
Jesus Cristo, verdadeiro Deus que se oferece como vítima.
[7] Louvável menção a todos os antigos institutos
Ecclesia Dei que, corajosamente, nos últimos anos, fizeram um maior e
amplo uso das rubricas pré-55.
[8] «Definitivamente, essa “fórmula que permitirá
avançar” conduz-nos uma vez mais ao texto fundador da Comissão Pontifícia
Ecclesia Dei, o motu próprio de 2 de julho de 1988: João Paulo II nele afirma
que a Tradição é viva. O discurso de 2005 de Bento XVI é o seu eco e intérprete
direto: essa vida da Tradição, é a “renovação na continuidade”. Renovação
evolucionista e modernista, que entende ultrapassar a contradição numa
hermenêutica impossível. Que concluir? Retomando as palavras citadas no começo
deste número, diríamos simplesmente que “a Fraternidade de São Pio X não tem a
negociar um caridoso reconhecimento que a salvaria de um suposto cisma. Ela tem
a honra imensa de, após quarenta anos de exclusão, poder, no Vaticano, dar
testemunho da fé católica”» Pe. Jean-Michel
Gleize, FSSPX - Courrier de Rome n.º 499, Maio de 2017.
[9] «Estabelecer no local indicado os dias em que
são permitidas as celebrações eucarísticas com o uso do Missal Romano
promulgado por São João XXIII em 1962. Nessas celebrações as leituras devem ser
proclamadas em vernáculo, utilizando as traduções da Sagrada Escritura para uso
litúrgico, aprovado pelas respetivas Conferências Episcopais». FRANCISCO, Papa
- Traditionis Custodes. 2021.
[10] João XXIII. A propósito das novas
canonizações, ver:
https://fsspxportugal.wordpress.com/a-proposito-das-canonizacoes-do-papa-joao-paulo-ii/.
[11] A isto os precisos contributos do Rev. Padre
Hesse, que citámos noutro lugar, bem como do próprio D. Athanasius Schneider, que
sobre esta questão se pronunciou aqui:
https://onepeterfive.com/society-cruel-chastity-schneider/?fbclid=IwAR3KJT4N2I_6ppYbJhbiPijNOiMQACqGXSy5u2lowsJK9QnaQ0xljVgkHMc.
[12] CHOCHEM, Martinho de – Explicação da Santa
Missa.
[13] Jeremias, XLVIII, 10.
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