A intenção do Motu Proprio Traditionis
Custodes, do Papa Francisco, de 16 de Julho de 2021, é reprimir qualquer
expressão de fidelidade à liturgia tradicional, mas o resultado será o de
desencadear uma guerra que terminará, inevitavelmente, com o triunfo da Tradição
da Igreja.
Quando, a 3 de Abril de 1969, Paulo VI promulgou o Novus Ordo Missæ (NOM),
a sua ideia de fundo era que, dentro de poucos anos, a Missa tradicional seria
apenas uma memória. O encontro da Igreja com o mundo moderno, que Paulo VI
esperava em nome de um “humanismo integral”, previa o desaparecimento de todas
as heranças da Igreja “constantiniana”. E o Rito Romano antigo, que São Pio V havia
restaurado em 1570, depois da devastação litúrgica protestante, parecia
destinado a desaparecer.
Nunca uma previsão se revelou mais errada. Hoje, os seminários estão
desprovidos de vocações e as paróquias esvaziam-se, às vezes abandonadas por sacerdotes
que anunciam o seu matrimónio e o regresso à vida civil. Ao contrário, os
lugares onde se celebra a liturgia tradicional e se prega a fé e a moral de
todos os tempos, estão lotados de fiéis e são viveiros de vocações. A Missa tradicional
é celebrada regularmente em 90 países de todos os continentes e o número dos
fiéis que nela participam cresce a cada ano, alimentando tanto a Fraternidade de
São Pio X quanto os institutos Ecclesia Dei, nascidos depois de 1988. O
coronavírus contribuiu para esse crescimento depois de, no seguimento da
imposição da comunhão na mão, muitos fiéis, descontentes com a dessacralização,
deixarem as suas paróquias para irem receber a Sagrada Eucaristia nos lugares em
que continua a ser administrada na boca.
Este movimento de almas nasceu como reacção a essa “ausência de forma” da nova
liturgia, sobre a qual Martin Mosebach escreveu bem no seu ensaio Eresia
dell’informe (trad. it. Cantagalli, 2009). Se autores progressistas como
Andrea Riccardi, da Comunidade de Santo Egídio, lamentam o desaparecimento
social da Igreja (La Chiesa brucia. Crisi e futuro del cristianesimo, Tempi
nouvi, 2021), uma das causas é, justamente, a incapacidade de atracção da nova
liturgia que não expressa o sentido do sagrado e da transcendência. Somente na absoluta
transcendência divina se expressa a extrema proximidade de Deus ao homem,
observou o Cardeal Ratzinger no livro que, antes da sua eleição para o
pontificado, dedicou à Introduzione allo spirito della liturgia (San
Paolo, Milão 2001). O então Prefeito da Congregação para a Fé, que havia sempre
colocado a liturgia no centro dos seus interesses, tornado Papa Bento XVI,
promulgou, a 7 de Julho de 2007, o Motu Proprio Summorum Pontificum, com
o qual restituiu pleno direito de cidadania ao Rito Romano antigo (infelizmente
definido como “forma extraordinária”), que juridicamente nunca foi revogado,
mas que, de facto, tinha sido interdito durante quarenta anos.
O Summorum Pontificum contribuiu para a multiplicação dos centros de
Missa tradicional e para o florescimento de uma abundante série de estudos de
alto nível sobre a velha e a nova liturgia. O movimento de redescoberta da
liturgia tradicional pelos jovens foi acompanhado por uma literatura tão
abundante que não é possível explicá-la aqui. Entre as obras mais recentes,
basta recordar os escritos do P. Claude Barthe, Histoire du missel tridentin
et de ses origines (Via Romana, 2016, trad. it. Solfanelli,
2018) e La Messe de Vatican II. Dossier historique (Via Romana, 2018); de
Michael Fiedrowicz, The Traditional Mass: History, Form, and Theology of the
Classical Roman Rite (Angelico Press, 2020); e de Peter Kwasniewski, Noble
Beauty, Transcendent Holiness: Why the Modern Age Needs the Class of Ages
(Angelico, 2017, trad. it. Faith and Culture, 2021). Nenhum estudo de igual valor foi produzido no
campo progressista.
Diante deste movimento de renascimento cultural e espiritual, o Papa Francisco
reagiu encarregando a Congregação para a Doutrina da Fé de enviar aos bispos um
questionário sobre a aplicação do Motu Proprio de Bento XVI. A indagação foi
sociológica, mas as conclusões que Francisco tirou dela são ideológicas. Não é
necessário fazer um levantamento para verificar como as igrejas frequentadas
pelos fiéis ligados à tradição litúrgica estão sempre cheias e as paróquias
ordinárias cada vez mais despovoadas. Mas na carta aos bispos que acompanha o
Motu Proprio de 16 de Julho, o Papa Francisco afirma: «As respostas
recebidas revelaram uma situação que me dói e preocupa, confirmando-me a
necessidade de intervir. Infelizmente, a intenção pastoral dos meus
Predecessores, que pretendiam “fazer todos os esforços para que todos aqueles
que verdadeiramente desejam a unidade possam permanecer nesta unidade ou
reencontrá-la”, muitas vezes foi seriamente desprezada». «Entristece-me
– acrescenta Francisco – um uso instrumental do Missale Romanum de 1962,
cada vez mais caracterizado por uma crescente rejeição não só da reforma
litúrgica, mas do Concílio Vaticano II, com a afirmação infundada e
insustentável de que traiu a Tradição e a “verdadeira Igreja”». Portanto, «tomo
a firme decisão de revogar todas as normas, as instruções, as concessões e os costumes
anteriores a este Motu Proprio».
O Papa Francisco não pensou intervir diante da laceração da unidade produzida
pelos bispos alemães, muitas vezes caídos na heresia em nome do Concílio
Vaticano II, mas parece convencido de que as únicas ameaças à unidade da Igreja
vêm de quem levantou dúvidas sobre o Vaticano II, como dúvidas foram levantadas
sobre a Amoris lætitia, sem que tenha chegado resposta. Daí
o artigo 1 do Motu Proprio Traditionis Custodes, segundo o qual «os
livros litúrgicos promulgados pelos santos Pontífices Paulo VI e João Paulo II,
em conformidade com os decretos do Concílio Vaticano II, são a única expressão
da lex orandi do Rito Romano».
No plano jurídico, a revogação do livre exercício do sacerdote de celebrar segundo
os livros litúrgicos anteriores à reforma de Paulo VI, é um acto manifestamente
ilegítimo. De facto, o Summorum Pontificum, de Bento XVI, reiterou que o
Rito tradicional nunca foi revogado e que cada sacerdote tem o pleno direito de
celebrá-lo em qualquer parte do mundo. Traditionis Custodes interpreta
esse direito como um privilégio, que, como tal, é retirado pelo Supremo
Legislador. Este modus procedendi, todavia, é completamente arbitrário,
porque a liceidade da Missa tradicional não surge de um privilégio, mas
do reconhecimento de um direito subjectivo de cada fiel, leigo, clérigo
ou religioso. Na verdade, Bento XVI nunca “concedeu” nada, mas apenas
reconheceu o direito de usar o Missal de 1962, «nunca revogado», e de fruir espiritualmente dele.
O princípio que Summorum Pontificum reconhece é a imutabilidade da bula Quo
primum, de São Pio V, de 14 de Julho de 1570. Como observa um eminente
canonista, o P. Raymond Dulac (Le droit de la Messe romaine, Courrier de
Rome, 2018), o próprio Pio V não introduziu nada de novo, mas restaurou uma
liturgia antiga, conferindo perpetuamente a cada sacerdote o privilégio de
celebrá-la. Nenhum Papa tem o direito de revogar ou alterar um rito que remonta
à Tradição Apostólica e que se formou ao longo dos séculos, qual é a chamada
Missa de São Pio V, confirma o grande liturgista Mons. Klaus Gamber, no volume
que, na edição francesa, traz o prefácio do Cardeal Ratzinger (La Réforme
liturgique en question, Editions Sainte-Madeleine, 1992).
Neste sentido, o Motu Proprio Traditionis Custodes pode ser considerado
um acto mais grave do que a exortação Amoris Lætitia. Mais, o Motu Proprio tem aplicações canónicas que faltam na exortação
pós-sinodal, mas enquanto a Amoris Lætitia parece conceder o acesso à
Eucaristia a quem não tem direito, Traditionis Custodes priva do bem
espiritual da Missa de sempre aqueles que têm direito a este bem irrenunciável
e que dele necessitam para perseverar na fé.
Também é evidente o sistema ideológico de considerar, a priori, como sectários
os grupos de fiéis ligados à tradição litúrgica da Igreja. Fala-se sobre eles
como se fossem sediciosos que devem ser colocados sob observação sem critérios
de julgamento (cf. nn. 1, 5 e 6), limita-se o seu direito de associação e
impede-se o bispo de poder aprovar outros, limitando o direito próprio do
Ordinário (cf. Código de Direito Canónico, cân. 321, §2). Os grupos de fiéis,
de facto, surgiram, até agora, de forma espontânea e tornaram-se porta-vozes de
alguns pedidos junto das legítimas autoridades, mas nunca foram “autorizados”.
Considerar necessária a autorização para o nascimento de um grupo constitui um
grave vulnus à liberdade de associação dos fiéis que o próprio Vaticano
II defendeu, assim como viola o Concílio a disposição que transforma os bispos
em meros executores da vontade papal.
Traditionis Custodes confirma o processo de centralização do poder do
Papa Francisco, em contradição com as suas constantes referências à “sinodalidade”
na Igreja. Por outras palavras, cabe «exclusivamente» ao bispo regular a
Forma Extraordinária na sua diocese, mas, de facto, o Motu Proprio (cf. art. 4)
limita a discricionariedade e a autonomia do bispo quando dispõe que não é
suficiente a sua autorização para a celebração da Missa pedida por um sacerdote
diocesano, mas deva pedir-se um placet da Sé Apostólica. Isso quer dizer
que o bispo não pode conceder essa autorização (que nunca é definida como faculdade,
por isso parece ser mais um privilégio) de forma autónoma, mas a sua decisão
ainda deve ser analisada pelos “superiores”. Como observa o P. Raymond de Souza, «as regulamentações mais permissivas são proibidas; as mais restritivas
são encorajadas».
O objectivo é claro: com o tempo, eliminar a presença do Rito tradicional para
impor o Novus Ordo, de Paulo VI, como único rito da Igreja. Para atingir
este objectivo, é necessária uma paciente reeducação dos desordeiros. Assim,
como se lê na carta aos bispos, «as indicações sobre como proceder nas
dioceses são ditadas, principalmente, por dois princípios: prover, por um lado, ao
bem daqueles que estão enraizados na forma celebrativa anterior (n.d.r. o Rito
Romano antigo) e precisam de tempo para regressar ao Rito Romano promulgado
pelos santos Paulo VI e João Paulo II (n.d.r. o Rito Romano novo ou Novus
Ordo Missæ); por outro lado, interromper a
erecção de novas paróquias pessoais, ligadas mais ao desejo e à vontade de cada
um dos sacerdotes do que à real necessidade do “santo Povo fiel de Deus”».
Tim Stanley não errou quando, no Spectator de 17 de Julho, a definiu como
uma «guerra sem misericórdia» contra o Rito antigo (The Pope’s
merciless war against the Old Rite). Bento XVI, com o Summorum Pontificum,
reconheceu publicamente a existência de uma imutável lex orandi da
Igreja que nenhum Papa jamais poderá revogar. Por outro lado, Francisco
manifesta a sua rejeição da lex orandi tradicional e, implicitamente, da
lex credendi que o Rito antigo expressa. A paz que o Motu Proprio de
Bento XVI tinha tentado garantir na Igreja acabou e Joseph Ratzinger, oito anos
depois da sua renúncia ao pontificado, está condenado a assistir à guerra que o
seu sucessor desencadeou, como no epílogo de uma tragédia grega.
A luta ocorre à beira do abismo do cisma. O Papa Francisco quer lá precipitar
os seus críticos, pressionando-os a constituir, de facto, senão de princípio,
uma “verdadeira Igreja” a ele oposta, mas ele próprio corre o risco de se afundar
no abismo se insistir em opor a igreja do Concílio à da Tradição. O Motu
Proprio Traditionis Custodes é um passo nessa direcção. Como deixar de
notar a malícia e a hipocrisia daqueles que pretendem destruir a Tradição autodenominando-se
“guardiões da Tradição”? E como não observar que isso acontece, precisamente, num
momento em que heresias e erros de todos os tipos devastam a Igreja?
Se a violência é o uso ilegítimo da força, o Motu Proprio do Papa Francisco é
um acto objectivamente violento porque prepotente e abusivo. Porém, erraria
qualquer pessoa que desejasse responder à ilegitimidade da violência com formas
ilegítimas de discordância.
A única resistência legítima é a aquela de quem não ignora o direito canónico e
acredita firmemente na visibilidade da Igreja; de quem não cede ao
protestantismo e não pretende fazer-se Papa contra o Papa; de quem modera a sua
linguagem e reprime as paixões desordenadas que pode levar a gestos
precipitados; de quem não cai em fantasias apocalípticas e mantém um firme
equilíbrio na tempestade; de quem, enfim, tudo baseia na oração, na convicção
de que só Jesus Cristo, e ninguém mais salvará, a Sua Igreja.
Roberto de Mattei
Através de Corrispondenza Romana
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Paz e bem
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