Depois de uma atenta e calma leitura
do recente motu proprio Traditionis Custodes, destituída daquela aspereza
e indignação que quase inevitavelmente suscita um documento – como este – de
tons draconianos e tendenciosos, o texto parece não um acto de força, mas de fraqueza,
um canto do cisne que, próximo do fim, canta com uma voz já não bela, mas mais
forte.
O documento apresenta uma série de anomalias canónicas que os juristas deverão
examinar cuidadosamente. Gostaríamos de nos deter num único ponto, litúrgico,
que nos parece ser de um significado absolutamente revolucionário e sem
fundamento. No artigo 1 do documento, como que para iluminar tudo o que se
segue, lê-se: «Os livros litúrgicos promulgados pelos santos Pontífices
Paulo VI e João Paulo II, em conformidade com os decretos do Concílio Vaticano
II, são a única expressão da lex orandi do Rito Romano».
Muito haveria a dizer sobre aquele em conformidade com os decretos do
Concílio Vaticano II, visto que o missal de Paulo VI – como foi amplamente
demonstrado – foi muito além do ditado conciliar, cunhando uma liturgia do
princípio, em completa descontinuidade não apenas com a tradição compendiada no
missal de São Pio V, mas também com a vontade dos próprios padres conciliares.
Em qualquer caso, esta liturgia, feita “teoricamente” (Cardeal Ratzinger), não
pode mais ser considerada parte do Rito Romano. Uma personalidade relevante
como Monsenhor Gamber afirmou-o com vigor depois da entrada em vigor do novo
missal. A nova liturgia é um «Ritus modernus», disse ele, já não «Ritus
Romanus». O P. Louis Bouyer, membro do Movimento Litúrgico, que, em
geral, era a favor das inovações conciliares, foi obrigado a afirmar: «Devemos
falar claramente: hoje, praticamente não há liturgia digna desse nome na
Igreja Católica». «Hoje – exortou Monsenhor Gamber, referindo-se
à liturgia reformada –, estamos diante dos escombros de uma Tradição quase
bimilenária». O P. Joseph Gelineau, um dos defensores da renovação, pôde
dizer: «Que aqueles que, como eu, conheceram e cantaram uma Missa solene
gregoriana em latim, recordem-se dela, se puderem. Que a comparem com a Missa
que temos agora. Não apenas as palavras, as melodias e alguns dos gestos são
diferentes. Para dizer a verdade, trata-se de uma liturgia diferente da Missa.
Isso deve ser dito sem ambiguidade: o Rito Romano que conhecíamos já não
existe (le rite romain tel que nous l’avons connu n’existe plus). Foi
destruído (il est détruit)».
Que o Rito Romano já não sobreviva no missal reformado de Paulo VI, são os
liturgistas amigos e inimigos da Tradição a afirmar. Por isso, o missal
reformado – como afirma K. Gamber – merece o título de missal modernus,
mas não romanus.
À luz destas elementares considerações litúrgicas, como entender o artigo 1 do
motu proprio? A que se junta – na carta aos Bispos – a surpreendente e
tendenciosa afirmação: «Deve-se, portanto, afirmar que o Rito Romano, várias
vezes adaptado, ao longo dos séculos, às exigências dos tempos, não só foi
preservado, mas renovado “em fiel respeito à Tradição”. Quem deseja
celebrar com devoção segundo a antecedente forma litúrgica, não terá
dificuldade em encontrar no Missal Romano, reformado segundo a mente do
Concílio Vaticano II, todos os elementos do Rito Romano». E termina:
«em particular, o cânone romano, que constitui um dos elementos mais
característicos». Agora é necessário esclarecer que, no missal de Paulo VI,
o Cânone Romano não é – nem mesmo na sua edição típica – o Cânone Romano do missal
de São Pio V. É o que mais se assemelha, mas não coincide, de modo algum, com ele.
O P. R. T. Calmel, O.P., entre 1968 e 1975, escreveu 4 artigos, reunidos sob o
significativo título Reparação pública ao ultrajado Cânone Romano (no
novo missal), para explicar a sua beleza eimutabilidade, bem como as
antinomias existentes entre o Cânone Romano do missal de São Pio V e o de Paulo
VI. Entristece-nos – sim, também nós estamos tristes – encontrar num documento
pontifício (para além disso, dirigido aos Bispos) tanta imperícia. Mas assim é.
E não é a única. Resta também explicar o que é o missal de São Pio V agora, uma
vez que já não é expressão do Rito Romano, sendo o missal de Paulo VI a única
expressão da lex orandi do Rito Romano. Deixou de ser um Rito Romano
após, pelo menos, 400 anos de vida?
O outro grave problema que se põe é a legitimidade de tal acto. Novamente Klaus
Gamber, no seu estudo A reforma da liturgia romana, questiona-se se um
supremo pontífice pode modificar um Rito. E responde negativamente, já que o
Papa é o guardião e garante da liturgia (como dos dogmas), não o seu dono. «Nenhum
documento da Igreja – escreve Gamber –, nem mesmo o Código de Direito
Canónico, diz expressamente que o Papa, como Supremo Pastor da Igreja, tem o
direito de abolir o Rito Tradicional. À plena et suprema potestas do Papa são claramente
postos limites (…). Mais de um autor (Gaetano, Suarez) expressa a opinião de
que a abolição do Rito Tradicional não entra nos poderes do Papa. (…).
Certamente, não é tarefa da Sé Apostólica destruir um Rito de Tradição
Apostólica, mas é seu dever mantê-lo e transmiti-lo». Segue-se que o
Rito Romano, expresso pelo missal de São Pio V, não é nem ab-rogado nem ab-rogável
e todos os sacerdotes conservam o direito de celebrar a Missa e os fiéis de
assistir.
Por fim, é espantoso e doloroso ler na Carta aos Bispos que a intenção deste
motu proprio não é outra senão a de São Pio V depois do Concílio de Trento: «Conforta-me
nesta decisão o facto de, depois do Concílio de Trento, também São Pio V ter ab-rogado
todos os ritos que não pudessem ostentar uma comprovada antiguidade,
estabelecendo um único Missale Romanum para toda a Igreja latina». Mas São
Pio V fez exactamente o oposto do que o Papa Francisco fez com este motu
proprio. É verdade que São Pio V estabeleceu um único Missale Romanum
para toda a Igreja latina, mas tal missal – ao contrário do de Paulo VI imposto
por Francisco – só foi restaurado, em cumprimento dos decretos tridentinos, para
ser instrumento de unidade para todos os católicos porque é mais antigo, não
porque é mais recente. Como pode o missal de Paulo VI ser instrumento de
unidade se (além de uma miríade de outros problemas) atingiu uma criatividade,
isto é, uma diversidade, «no limite do suportável», como reconhece o próprio
Pontífice? Além disso, a «comprovada antiguidade» dos ritos desejada
pelo Papa de Lepanto exigia uma ininterrupta continuidade de, pelo menos, 200
anos. O que significa que o rito moderno de Paulo VI, sob o grande Inquisidor,
teria sido elegantemente suprimido, sem qualquer esperança, nem mesmo remota,
de poder elevar-se a rito único de toda a cristandade. Sem dizer que São Pio V,
com a bula Quo primum, blindou o seu missal in perpetuum,
tornando-o ab-rogável. O motu proprio, dessa forma, invoca a autoridade de quem o
condena. Também aqui é surpreendente constatar tal inexperiência histórica num
documento pontifício.
Concluindo, o motu proprio, querendo ler em profundidade, é uma declaração de
guerra, mas é também o reconhecimento de uma derrota. É um aparente acto de
força que encobre uma fraqueza e imperícia de fundo. O missal reformado foi uma
catástrofe a todos os níveis: litúrgico, dogmático, moral. O resultado a todos evidente
é que esvaziou igrejas, conventos e seminários. Não podendo impô-lo pela força
da tradição, que não veicula, quer-se impô-lo por meio de leis. Mas é uma
operação ímproba, baseada no engano e, logo, destinada ao fracasso. Não é
uma foiçada exicial, mas uma poda vivificante do missal de São Pio V, que – pelo
ódio que desperta nas franjas modernistas da hierarquia – confirma ser «a
coisa mais bela desta parte do Céu», que nos foi transmitida pelos nossos
pais e que transmitiremos aos nossos filhos, mesmo que tenhamos que o
empurpurar com o nosso sangue.
Cristiana de Magistris
Através de Corrispondenza Romana
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