A pedido de Mons. Carlo Maria Viganò,
antigo Núncio Apostólico nos Estados Unidos da América, o portal Dies Iræ traduziu e disponibiliza, em exclusivo para língua
portuguesa, uma longa declaração que Sua Excelência Reverendíssima escreveu a
propósito do autocrático Motu Proprio Traditionis Custodes, de Francisco,
a respeito da Missa Tradicional.
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28 de Julho de 2021
Ss. Nazarii et Celsi Martyrum,
Victoris I Papæ et Martyris ac Innocentii I Papæ et Confessoris
Dico vobis quia si hii tacuerint, lapides clamabunt.
Lc 19, 40
Traditionis Custodes: é
este o incipit do documento com o qual Francisco anula, com poder
absoluto, o precedente Motu Proprio Summorum Pontificum, de Bento XVI. Não
terá escapado o tom quase trocista da empolada citação de Lumen Gentium:
precisamente no momento em que Bergoglio reconhece os Bispos como guardiões da
Tradição, pede-lhes que evitem a sua mais alta e sagrada expressão orante. Quem
tenta encontrar nas dobras do texto um qualquer escamotage para
contorná-lo, saiba que o rascunho enviado à Congregação para a Doutrina da Fé
para revisão foi extremamente mais drástico do que o texto final: uma
confirmação, como se fosse necessário, de que não foram necessárias
particulares pressões da parte dos inimigos históricos da Liturgia tridentina –
a começar pelos eruditos de Santo Anselmo – para convencer Sua Santidade a arriscar-se
no que faz de melhor: demolir. Ubi solitudinem faciunt, pacem appellant.
O modus operandi de Francisco
Francisco desmentiu, mais uma vez, a piedosa ilusão da hermenêutica da continuidade,
afirmando que a coexistência entre Vetus e Novus Ordo é
impossível porque estas são expressão de duas abordagens doutrinais e
eclesiológicas inconciliáveis. Por um lado, está a Missa Apostólica, voz da
Igreja de Cristo; de outro, a “celebração eucarística” montiniana, voz da
igreja conciliar. E esta não é uma acusação, por mais legítima que seja, feita
por aqueles que expressam reservas sobre o rito reformado e sobre o Vaticano
II; mas uma admissão, na verdade, uma orgulhosa afirmação de pertença
ideológica por parte do próprio Francisco, chefe da facção mais extremista do
progressismo. O seu duplo papel de papa e de liquidatário da Igreja Católica permite-lhe,
por um lado, demoli-la com decretos e actos de governo, por outro lado, usar o
prestígio que o seu cargo representa para estabelecer e difundir a nova
religião sobre os escombros da antiga. Pouco importa se as formas com que age
contra Deus, contra a Igreja e contra o rebanho do Senhor estão em total
conflito com os seus apelos à parrésia, ao diálogo, à construção de
pontes e não à construção de muros: a igreja da misericórdia e o hospital
de campanha revelam-se vazios artifícios retóricos, quando a deles beneficiar
deveriam ser os católicos e não os hereges ou fornicadores. Na verdade, cada um
de nós sabe bem que a indulgência de Amoris Lætitia para com os concubinários públicos e os adúlteros dificilmente seria
imaginável para com aqueles “rígidos” contra os quais Bergoglio atira as suas flechas
assim que tem oportunidade.
Todos nós compreendemos, depois de anos de pontificado, que as razões
apresentadas por Bergoglio para recusar um encontro com um Prelado, um político
ou um intelectual conservador não valem para o Cardeal molestador, o Bispo
herético, o político abortista, o intelectual globalista. Em suma, há uma clara
diferença de comportamento, a partir da qual se pode apreender a parcialidade e
o partidarismo de Francisco em proveito de qualquer ideologia, pensamento,
projecto, expressão científica, artística ou literária que não seja católica. Tudo
o que evoque, mesmo que vagamente, algo de católico, parece suscitar no inquilino
de Santa Marta uma aversão desconcertante, para dizer o mínimo, mesmo que seja em
função do Sólio em que está sentado. Muitos notaram essa dissociação, esse tipo
de bipolaridade de um papa que não se comporta como Papa e não fala como um Papa.
O problema é que não estamos diante de uma espécie de homiziação do Papado,
como poderia acontecer na presença de um Pontífice doente ou muito idoso; mas
de uma acção constante, organizada e planeada em sentido diametralmente oposto
à própria essência do Papado. Bergoglio não só não condena os erros do tempo
presente – nunca o fez! –, reafirmando fortemente a Verdade católica, mas
também opera activamente para divulgá-los, promovê-los, encorajar os seus
proponentes, divulgar as máximas e hospedar os seus eventos no Vaticano,
enquanto silencia quantos denunciam esses erros. Não só não pune os Prelados
fornicadores, mas até os promove e defende mentindo, ao mesmo tempo que remove Bispos
conservadores e não esconde o aborrecimento pelos sinceros apelos dos Cardeais
não alinhados com o novo curso. Não só não condena os políticos abortistas que
se proclamam católicos, mas intervém para impedir que a Conferência Episcopal se
pronuncie a tal propósito, contrariando aquele caminho sinodal que, por
outro lado, lhe permite lançar mão de uma minoria de ultraprogressistas para
impor a sua vontade à maioria dos Padres sinodais.
A constante dessa atitude, detectável na sua forma mais descarada e arrogante em
Traditionis Custodes, é a duplicidade e a mentira. Uma duplicidade de
fachada, é claro, diariamente negada por tomadas de posição nada prudentes em
favor de uma parte muito específica, que por uma questão de brevidade podemos
identificar com a esquerda ideológica, na verdade com a sua evolução mais
recente numa chave globalista, ecologista, transumana e LGBTQ. Chegamos ao ponto
de que mesmo as pessoas simples, com pouco conhecimento das questões
doutrinais, compreenderam que temos um papa não-católico, pelo menos no
sentido estrito do termo. Isso coloca problemas de natureza canónica que não
são indiferentes, que não nos compete resolver, mas que, mais cedo ou mais tarde,
terão que ser resolvidos.
O extremismo ideológico
Um outro elemento significativo deste pontificado, levado às suas extremas
consequências com Traditionis Custodes, é o extremismo ideológico de
Bergoglio. Extremismo que se deplora com palavras quando diz respeito aos
outros, mas que se mostra na sua expressão mais violenta e implacável quando é
ele mesmo quem o põe em prática contra os clérigos e os leigos ligados ao rito
antigo e fiéis à Sagrada Tradição. E enquanto em relação à Fraternidade de São
Pio X se mostra disposto a concessões e a relações de “boa vizinhança”, para
com os pobres sacerdotes e fiéis, que para mendigar uma Missa em latim devem
suportar mil humilhações e chantagens, não mostra compreensão, nenhuma
humanidade. Este comportamento não é casual: o movimento de Monsenhor Lefebvre
goza de autonomia e independência económica próprias, e por isso não tem por que
temer retaliações ou comissariados por parte da Santa Sé; enquanto os Bispos, os
sacerdotes e os clérigos incardinados nas Dioceses ou nas Ordens religiosas
sabem que sobre eles pesa a espada de Dâmocles do
afastamento, da destituição do estado eclesiástico, da privação dos próprios
meios de subsistência.
A experiência da Missa Tridentina na
vida sacerdotal
Quem teve oportunidade de acompanhar as minhas intervenções e declarações, sabe
bem qual é a minha posição sobre o Concílio e sobre o Novus Ordo; mas também
sabe qual é a minha formação, o meu curriculum ao serviço da Santa Sé e a
minha tomada de consciência relativamente recente a propósito da apostasia e da
crise em que nos encontramos. Por esse motivo, gostaria de reiterar a minha
compreensão pelo percurso espiritual de quem, justamente por esta situação, não
pode ou ainda não é capaz de fazer uma escolha radical, como celebrar ou assistir
exclusivamente à Missa de São Pio V. Muitos sacerdotes descobrem os tesouros da
venerável Liturgia tridentina apenas no momento em que a celebram e se deixam impregnar,
e não é raro que a inicial curiosidade pela “forma extraordinária” – certamente
fascinante pela solenidade composta do rito – se mude rapidamente na
consciência da profundidade das palavras, na clareza da doutrina, na incomparável
espiritualidade que essa faz nascer e nutre nas nossas almas. Há uma harmonia
perfeita que as palavras não podem expressar e que o fiel só consegue
compreender parcialmente, mas que tocam o coração do Sacerdócio como só Deus sabe
fazer. Podem-no confirmar os meus Irmãos que se aproximaram do usus
antiquior após décadas de obediente celebração do Novus Ordo: abre-se
um mundo, um cosmo que compreende a oração do Breviário com as lições das
Matinas e os comentários dos Padres, as referências aos textos da Missa, o
Martirológio na Hora de Prima... São palavras sagradas não porque são expressas
em latim, mas, pelo contrário, são expressas em latim porque a linguagem vulgar
rebaixá-las-ia, profaná-las-ia precisamente, como observava sabiamente Dom
Guéranger. São as palavras da Esposa ao Esposo divino, palavras da alma que
vive em íntima união com Deus, da alma que se deixa habitar pela Santíssima
Trindade. Palavras essencialmente sacerdotais, no sentido mais profundo do
termo, que implica no Sacerdócio não apenas o poder de oferecer o sacrifício,
mas de unir-se na oblação de si à Vítima pura, santa e imaculada. Nada que ver com
os palavreados do rito reformado, muito empenhado em agradar a mentalidade
secularizada para se dirigir à Majestade de Deus e à Corte celeste; tão preocupado
em fazer-se compreensível, que tem que renunciar a comunicar qualquer coisa, excepto
evidências sem vigor; tão cuidadoso em não ofender a susceptibilidade dos
hereges, a ponto de permitir silenciar a Verdade precisamente no momento em que
o Senhor Deus se faz presente no altar; tão temoroso de pedir ao fiel o mínimo
compromisso, a ponto de banalizar o canto sagrado e qualquer expressão
artística ligada ao culto. O simples facto de pastores luteranos, modernistas e
renomados maçons colaborarem na redacção desse rito deveria fazer-nos entender,
senão a má-fé e o dolo, pelo menos, a mentalidade horizontal, desprovida de
ímpeto sobrenatural, que moveu os autores da chamada “reforma litúrgica”. Que,
tanto quanto se sabe, não brilharam, certamente, com a santidade com que refulgem
os sagrados autores dos textos do antigo Missale Romanum e de todo o corpus
litúrgico.
Quantos de vós, sacerdotes – e, certamente, muitos leigos também –, ao recitardes
os maravilhosos versos da sequência de Pentecostes, vos comovestes até às
lágrimas, compreendendo que aquela vossa inicial predilecção pela liturgia
tradicional não tinha nada que ver com uma estéril satisfação estética, mas evoluiu
para uma verdadeira e precisa necessidade espiritual, tão indispensável quanto
é respirar? Como podeis, como podemos explicar, àqueles que hoje gostariam de
privar-vos deste bem inestimável, que aquele rito bendito vos fez descobrir a
verdadeira natureza do vosso Sacerdócio, e que dele e somente dele podeis tirar
força e nutrimento para enfrentar os compromissos do vosso ministério? Como
deixar claro que o regresso obrigatório ao rito montiniano representa para vós um
sacrifício impossível, porque na quotidiana batalha contra o mundo, a carne e o
diabo esse vos deixa desarmados, prostrados e sem forças?
É evidente que apenas aqueles que não celebraram a Missa de São Pio V podem
considerá-la como um irritante enfeite do passado, do qual se pode passar sem.
Até muitos jovens sacerdotes, habituados ao Novus Ordo desde a
adolescência, compreenderam que as duas formas do rito nada têm em comum, e que
uma é tão superior a ponto de mostrar à outra todos os seus limites
e críticas, tornando quase penoso celebrá-la. Não se trata de nostalgia,
de culto do passado: aqui falamos da vida da alma, do seu crescimento
espiritual, da ascese e da mística. Conceitos que quantos vêem o próprio Sacerdócio
como uma profissão não podem sequer compreender, assim como não podem
compreender a agonia que sente uma alma sacerdotal ao ver profanadas as Espécies
Eucarísticas durante os grotescos ritos da Comunhão no tempo da farsa
pandémica.
A visão redutiva da liberalização da
Missa
É por isso que acho extremamente desagradável ter de ler em Traditionis
Custodes que a razão pela qual Francisco acredita que o Motu Proprio Summorum
Pontificum possa ter sido promulgado há quatorze anos resida apenas no desejo
de recompor o chamado cisma de Mons. Lefebvre. É claro que o cálculo “político”
pode ter tido o seu peso, sobretudo na época de João Paulo II, ainda que
naquela época os fiéis da Fraternidade de São Pio X eram numericamente poucos;
mas o pedido de poder restituir a cidadania à Missa que durante dois milénios
nutriu a santidade dos fiéis e deu vida à civilização cristã não pode exaurir-se
num facto contingente.
Com o seu Motu Proprio, Bento XVI devolveu à Igreja a Missa Apostólica Romana,
declarando que essa nunca havia sido abolida. Indirectamente, admitiu que, da
parte de Paulo VI, houve um abuso quando, para impor autoridade ao seu rito,
proibiu implacavelmente a celebração da Liturgia tradicional. E ainda que nesse
documento possam existir alguns elementos inconsistentes, como, por exemplo, a
coexistência das duas formas do mesmo rito, podemos considerar que serviram
para permitir a difusão da forma extraordinária sem afectar a ordinária. Noutras
épocas, teria parecido incompreensível permitir a celebração de uma Missa
impregnada de equívocos e omissões, quando a autoridade do Pontífice poderia
simplesmente restaurar o antigo rito. Mas hoje, com o pesado fardo do Vaticano
II e com a mentalidade secularizada já difundida, mesmo a mera legitimidade de
celebrar a Missa Tridentina sem permissão pode ser considerada um bem inegável;
um bem visível para todos pelos copiosos frutos que traz às comunidades onde é
celebrada. E que teria dado ainda mais frutos se, ao menos, fosse aplicado o Summorum
Pontificum em todos os seus pontos e com espírito de verdadeira comunhão
eclesial.
O alegado «uso instrumental» do Missale
Romanum
Francisco sabe bem que o inquérito realizado entre os Bispos de todo o mundo
não deu resultados negativos, embora a formulação das perguntas deixasse compreender
quais eram as respostas que esperava receber. Aquela consulta foi um pretexto para
fazer crer que a decisão que tomou era inevitável e fruto de um pedido unânime do
Episcopado. Todos nós sabemos que se Bergoglio deseja obter um resultado, não
hesita em recorrer a exageros, mentiras e golpes de mão: os acontecimentos dos
últimos Sínodos demonstraram-no sem qualquer dúvida razoável, com a Exortação
Pós-Sinodal redigida antes mesmo do voto do Instrumentum laboris. Também
neste caso, portanto, o objectivo pretendido era a abolição da Missa Tridentina
e a profasis, ou seja, a aparente desculpa, deveria ser o alegado «uso
instrumental do Missale Romanum de 1962, cada vez mais caracterizado por uma
rejeição crescente não só da reforma litúrgica, mas do Concílio Vaticano II»
(aqui). Com toda a franqueza, desse uso
instrumental pode-se acusar a Fraternidade de São Pio X, que tem todo o direito
de afirmar o que cada um de nós sabe muito bem, a saber, que a Missa de São Pio
V é incompatível com a doutrina e a eclesiologia pós-conciliar. Mas a
Fraternidade não é afectada pelo Motu Proprio e celebra desde sempre com o
Missal de 1962, justamente em virtude daquele direito inalienável que Bento XVI
reconheceu, e não criou ex nihilo, em 2007.
O sacerdote diocesano que celebra a Missa na igreja que lhe foi atribuída pelo
Bispo, e que todas as semanas deve passar o interrogatório pelas acusações de
zelosos católicos progressistas só porque ousou fazer recitar o Confíteor antes
de distribuir a Comunhão aos fiéis, sabe muito bem que não pode falar mal do Novus
Ordo ou do Vaticano II, porque à primeira sílaba já seria convocado à Cúria
e enviado para uma paróquia perdida nas montanhas. Esse silêncio, muitas vezes
doloroso e quase sempre percebido por todos como mais eloquente do que muitas
palavras, é o preço a pagar para ter a oportunidade de celebrar a Santa Missa
de sempre, para não privar os fiéis das Graças que essa derrama sobre a Igreja
e sobre o mundo. E o que é ainda mais absurdo é que enquanto ouvimos dizer
impunemente que a Missa Tridentina deve ser abolida, por ser incompatível com a
eclesiologia do Vaticano II, assim que dizemos a mesma coisa – isto é, que a
Missa montiniana é incompatível com a eclesiologia católica – somos
imediatamente condenados e a nossa afirmação é usada como prova no tribunal
revolucionário de Santa Marta.
Pergunto-me que doença espiritual possa ter atingido os Pastores nestas décadas
para levá-los a não serem pais amorosos, mas implacáveis censores dos seus sacerdotes,
vigilantes funcionários prontos a revogar todos os direitos em virtude de uma
chantagem que não tentam sequer dissimular. Este clima de desconfiança não
beneficia em nada a serenidade de tantos bons sacerdotes, quando o bem que
fazem é sempre colocado sob as lentes de funcionários que consideram os fiéis
ligados à Tradição como um perigo, uma presença incómoda a ser tolerada com a
condição de não emergir muito. Mas como se pode conceber uma Igreja em que o
bem é sistematicamente obstaculizado e quem o faz é visto com suspeita e
mantido sob controlo? Compreendo, pois, o escândalo de tantos Católicos, fiéis
e não poucos sacerdotes, perante este «pastor que, em vez de sentir o odor
das suas ovelhas, as espanca raivosamente com um bastão» (aqui).
O equívoco de poder gozar de um direito como se fosse uma graciosa concessão
também se verifica na coisa pública, onde o Estado se permite autorizar
viagens, aulas, aberturas das actividades e desenvolvimento do trabalho, desde
que nos submetamos à inoculação do soro génico experimental. Assim, como a
“forma extraordinária” é concedida com a aceitação do Concílio e da Missa
reformada, também na esfera civil os direitos dos cidadãos são concedidos com a
aceitação da narrativa pandémica, da vacinação e dos sistemas de rastreio. Não
é surpreendente que, em muitos casos, sejam precisamente sacerdotes e Bispos – e
o próprio Bergoglio – que pedem que as pessoas sejam vacinadas para ter acesso
aos Sacramentos: a perfeita sincronia de acção de ambos os lados é, no mínimo,
perturbadora.
Mas onde está, então, esse uso instrumental do Missale Romanum? Preferimos
falar do uso instrumental do Missal de Paulo VI, este sim – parafraseando as
palavras de Bergoglio – cada vez mais caracterizado por uma rejeição crescente
não só da tradição litúrgica pré-conciliar, mas de todos os Concílios Ecuménicos
anteriores ao Vaticano II? Por outro lado, não é precisamente Francisco que
considera uma ameaça ao Concílio o simples facto de se poder celebrar uma Missa que repudia e condena todos os desvios doutrinais do Vaticano II?
Outras incongruências
Nunca na história da Igreja um Concílio ou uma reforma litúrgica constituíram
um ponto de ruptura entre o antes e o depois! Nunca, durante estes dois
milénios, os Romanos Pontífices traçaram deliberadamente uma fronteira
ideológica entre a Igreja que os precedeu e aquela que se encontravam a
governar, anulando e contradizendo o Magistério dos seus Predecessores! Aquele antes
e aquele depois, no entanto, tornaram-se uma obsessão, tanto para
aqueles que prudentemente insinuavam erros doutrinais por trás de expressões
equívocas, quanto para aqueles que – com a impudência daqueles que acreditam
ter vencido – propagavam o Vaticano II como «o 1789 da Igreja», como um acontecimento
“profético” e “revolucionário”. Antes de 7 de Julho de 2007, diante da
liberalização do rito tradicional, um conhecido mestre de cerimónias pontifício
respondeu irritado: “Não se torna atrás!”. Evidentemente, no promulgado Summorum
Pontificum, com Francisco pode-se voltar atrás, e como, se isso servir para
preservar o poder e impedir que o Bem se propague! O que ecoa sinistramente é o “nada
será como antes” da farsa pandémica.
A admissão de Francisco de uma suposta divisão entre os fiéis vinculados à
liturgia tridentina e aqueles que, em grande parte por hábito ou por resignação,
se adaptaram à liturgia reformada é reveladora: não procura sanar essa divisão
reconhecendo plenos direitos a um rito objectivamente melhor do que o rito
montiniano, mas precisamente para impedir que seja evidente a superioridade
ontológica da Missa de São Pio V e que isso faça emergir as críticas do rito
reformado e da doutrina que expressa, ele proíbe-o, aponta-o como divisivo, confina-o
em reservas indígenas, tentando limitar ao máximo a sua difusão, para que
desapareça por completo, em nome da cancel culture da qual a revolução
conciliar foi a infeliz precursora. Não podendo tolerar que o Novus Ordo
e o Vaticano II saiam inexoravelmente derrotados do confronto com o Vetus
Ordo e o perene Magistério católico, a única solução que se pode adoptar é
apagar todos os vestígios de Tradição, relegá-la a nostálgico refúgio de qualquer
irredutível octogenário ou de uma igrejinha de excêntricos, ou apresentando-a pretextuosamente
como o manifesto ideológico de uma minoria de fundamentalistas. Por outro lado,
construir uma versão mediática coerente ao sistema, a ser repetida ad
nauseam para doutrinar as massas, é um elemento recorrente não só em âmbito
eclesiástico, mas também em âmbito político e civil, pelo que o que aparece nas suas desconcertantes
evidências como deep church e deep state nada mais são do que
duas linhas paralelas que vão na mesma direcção e têm como destino final a Nova
Ordem Mundial, com a sua religião e o seu profeta.
A divisão existe, mas não vem dos bons católicos e clérigos que permanecem
fiéis à doutrina de sempre, mas daqueles que substituíram a ortodoxia pela
heresia e o Santo Sacrifício por um ágape fraterno. Aquela divisão não é de
hoje, mas remonta aos anos sessenta, quando o “espírito do Concílio”, a
abertura ao mundo e o diálogo inter-religioso devastaram dois mil anos de
catolicismo e revolucionaram todo o corpo eclesial, perseguindo ou ostracizando
os refratários. No entanto, aquela divisão, realizada com o trazer a confusão
doutrinal e litúrgica para o seio da Igreja, não parecia tão deplorável então;
enquanto hoje, em plena apostasia, são paradoxalmente considerados divisivos justamente aqueles que pedem não a condenação explícita do Vaticano II e do Novus
Ordo, mas, pelo menos, a tolerância da Missa “na forma extraordinária”, em
nome do tão alardeado pluralismo multifacetado.
Significativamente, mesmo no mundo civil, a tutela das minorias só é válida
quando elas servem para demolir a sociedade tradicional, enquanto é ignorada
quando deveria garantir os legítimos direitos dos cidadãos honestos. E ficou
claro que, sob o pretexto da tutela das minorias, a única intenção era
enfraquecer a maioria dos bons, enquanto agora que a maioria é composta de
desviados, a minoria dos bons pode ser esmagada sem piedade: a história recente
não falta de precedentes esclarecedores a esse respeito.
A natureza tirânica de Traditionis
Custodes
É desconcertante, na minha opinião, não tanto este ou aquele ponto do Motu
Proprio, mas a sua global índole tirânica, acompanhada por uma substancial
falsidade dos argumentos adoptados para justificar as decisões impostas. Assim
como escandaliza o abuso de poder de uma autoridade que tem a sua própria razão
de ser não em impedir ou limitar as Graças que são concedidas aos seus membros através
da Igreja, mas em favorecê-las; não em tirar glória à divina Majestade com um
rito que acena aos Protestantes, mas em restituí-la de modo perfeito; não em
semear erros doutrinais e morais, mas em condená-los e erradicá-los. Também
aqui, o paralelismo com o que acontece no mundo civil é muito evidente: os nossos
governantes abusam do seu poder a par dos nossos Prelados, impondo regras e
limitações em violação dos mais básicos princípios do direito. Além disso,
justamente aqueles que estão constituídos em autoridade, em ambas as frentes,
muitas vezes fazem uso de um mero reconhecimento de facto por parte da
base – cidadãos e fiéis – mesmo quando as formas como conquistaram o poder
violam, senão a letra, pelo menos, o espírito da lei. O caso da Itália, em que
um Governo não eleito legisla sobre a obrigação da vacinação e sobre o green
pass, violando a Constituição e os direitos naturais dos italianos, não
parece muito diferente da situação em que se encontra a Igreja, com um Pontífice
demissionário substituído por Jorge Mario Bergoglio, escolhido – ou, pelo menos,
apreciado e apoiado – pela Máfia de São Galo e pelo Episcopado ultraprogressista.
Fica evidente que existe uma profunda crise de autoridade, civil e religiosa,
em que quem exerce o poder fá-lo contra quem deveria proteger e, sobretudo,
contra a finalidade para a qual essa autoridade foi constituída.
Analogias entre deep church e deep
state
Penso que se compreendeu que a sociedade civil e a Igreja sofrem do mesmo cancro
que atingiu a primeira com a Revolução Francesa e a segunda com o Concílio
Vaticano II: em ambos os casos, o pensamento maçónico está na base da demolição
sistemática da instituição e da sua substituição por um simulacro que mantém as
suas aparências externas, a estrutura hierárquica e a força coercitiva, mas com
finalidades diametralmente opostas àquelas que deveria ter.
A este ponto, os cidadãos, por um lado, e os fiéis, por outro, encontram-se na
posição de terem de desobedecer à autoridade terrena, para obedecer à divina
que governa os Estados e a Igreja. Obviamente, os “reaccionários” – isto é,
aqueles que não aceitam a perversão da autoridade e querem permanecer fiéis à
Igreja de Cristo e à Pátria – constituem um elemento de dissidência que não
pode ser tolerado de forma alguma e que deve, por isso, ser desacreditado,
deslegitimado, ameaçado e privado dos seus direitos, em nome de um “bem público”
que já não é o bonum commune, mas o seu oposto. Que sejam acusados de conspiracionismo
ou de tradicionalismo, de complotismo ou de integralismo, estes poucos
sobreviventes de um mundo que se pretende fazer desaparecer constituem uma
ameaça ao cumprimento do plano global, precisamente no momento mais crucial da
sua realização. É por isso que o poder reage de forma tão aberta, descarada e
violenta: a evidência da fraude corre o risco de ser compreendida por um maior
número de pessoas, de as reunir numa resistência organizada, de romper o muro
de silêncio e de feroz censura imposta pelo mainstream.
Podemos, pois, compreender a violência das reacções das autoridades e preparar-nos
para uma oposição forte e determinada, continuando a fazer uso daqueles
direitos que nos são abusiva e ilicitamente negados. Claro, poderemos
encontrar-nos a ter que exercer aquele direitos de forma incompleta, quando nos
é negada a oportunidade de viajar se não temos o green pass ou se o
Bispo nos proíbe de celebrar a Missa de sempre numa igreja da sua Diocese; mas a
nossa resistência aos abusos da autoridade ainda poderá contar com as Graças
que o Senhor não deixará de nos conceder, em particular sobre a virtude da
Fortaleza, indispensável nos tempos de tirania.
A normalidade que assusta
Se por um lado podemos ver como a perseguição aos dissidentes é bem organizada
e planeada, por outro não podemos deixar de reconhecer a fragmentação da
oposição. Bergoglio sabe bem que qualquer movimento dissidente deve ser
silenciado, acima de tudo, criando divisões no seu interior e isolando sacerdotes e
fiéis. Uma profícua e fraterna colaboração entre clero diocesano, religiosos e Institutos
Ecclesia Dei representa uma eventualidade a evitar, porque permitiria a
difusão do conhecimento do rito antigo, bem como uma preciosa ajuda no
ministério. Mas isso significaria fazer tornar a Missa Tridentina uma “normalidade”
na vida quotidiana dos fiéis, coisa que para Francisco não é tolerável. Por
isso, os clérigos diocesanos são deixados à mercê dos Ordinários, enquanto os
Institutos Ecclesia Dei são colocadas sob a autoridade da Congregação dos
Religiosos, qual triste prelúdio de um destino já estabelecido. Não esqueçamos
a sorte que tocou às florescentes Ordens religiosas, culpadas de serem
abençoadas por numerosas vocações nascidas e criadas graças à odiada Liturgia
tradicional e à fiel observância da Regra. É por isso que certas formas de
insistência sobre o aspecto cerimonial das celebrações correm o risco de
legitimar disposições do comissariado e fazem o jogo de Bergoglio.
Mesmo no mundo civil, precisamente no favorecer certos excessos dos
dissidentes, os governantes marginalizam-nos e legitimam medidas repressivas
contra eles: pensemos no caso dos movimentos no-vax e quão fácil é
desacreditar os legítimos protestos dos cidadãos, enfatizando a excentricidade
e as inconsistências de alguns. E é muito fácil condenar alguns exagitados que,
por exasperação, atearam fogo a um pavilhão de vacinas, ofuscando milhões de pessoas
honestas que vão às ruas para não serem marcadas com o passaporte sanitário ou
serem despedidas se não se deixam vacinar.
Não ficar isolados e desorganizados
Um outro elemento importante para todos nós é a necessidade de dar visibilidade
ao protesto composto e garantir uma forma de coordenação para a acção pública.
Com a abolição de Summorum Pontificum, regredimos vinte anos; esta
infeliz decisão de Bergoglio de anular o Motu Proprio do Papa Bento XVI está
fadada a um inexorável fracasso, porque toca a própria alma da Igreja, da qual o
Senhor é Pontífice e Sumo Sacerdote. E não é certo que todo o Episcopado – como
vemos com alívio nestes dias – esteja disposto a sofrer passivamente formas de
autoritarismo que não contribuem, certamente, para a pacificação das almas. O
Código de Direito Canónico garante aos Bispos a possibilidade de dispensar os próprios
fiéis das leis particulares ou universais, sob certas condições; em segundo
lugar, o povo de Deus compreendeu bem a natureza subversiva de Traditionis
Custodes e é instintivamente levado a querer saber o que desperta tanta
desaprovação nos progressistas. Não nos surpreendamos, por isso, se, nas igrejas
onde se celebra a Missa tradicional, virmos fiéis provenientes da vida
paroquial ordinária e até pessoas afastadas da Igreja. Será nosso dever, como
Ministros de Deus ou como simples fiéis, dar prova de firmeza e de serena
resistência a tais abusos, percorrendo, com espírito sobrenatural, o nosso
pequeno Calvário quotidiano, enquanto os novos sumos sacerdotes e os escribas
do povo escarnecem de nós e apontam-nos como fanáticos. Será a nossa humildade,
a oferta silenciosa das injustiças para connosco e o exemplo de uma vida
coerente com o Credo que professamos a merecer o triunfo da Missa Católica e a
conversão de muitas almas. E lembremo-nos de que, tendo recebido muito, muito
nos será pedido.
Restitutio in integrum
«Qual o pai de entre vós que, se o filho lhe pedir pão, lhe dará uma pedra?
Ou, se lhe pedir um peixe, lhe dará uma serpente? Ou, se lhe pedir um ovo, lhe
dará um escorpião?» (Lc 11, 11-12). Agora podemos compreender o significado
destas palavras, considerando com dor e desgosto o cinismo de um pai que nos dá
as pedras de uma liturgia sem alma, as serpentes de uma doutrina corrupta e os
escorpiões de uma moral adulterada. E que chega a dividir o rebanho do Senhor
entre aqueles que aceitam o Novus Ordo e aqueles que querem permanecer
fiéis à Missa dos nossos pais, exactamente como os governantes põem vacinados e não-vacinados
uns contra os outros.
Quando Nosso Senhor, montado num jumentinho, entrou em Jerusalém, enquanto a
multidão espalhava mantos à Sua passagem, os fariseus perguntaram-lhe: «”Mestre,
repreende os teus discípulos.” Jesus retorquiu: “Digo-vos que, se eles se
calarem, gritarão as pedras.”» (Lc 19, 28-40). Desde há sessenta anos que
gritam as pedras das nossas igrejas, das quais foi duas vezes proscrito o Santo
Sacrifício. Gritam os mármores dos altares, as colunas das basílicas, as altas
abóbadas das catedrais. Porque aquelas pedras, consagradas ao culto do Deus
verdadeiro, hoje estão abandonadas e desertas, ou profanadas por ritos odiosos,
ou transformadas em parques de estacionamento e supermercados, precisamente como
resultado daquele Concílio que nos obstinamos em defender. Gritamos também nós, que
do templo de Deus somos pedras vivas: gritamos com confiança ao Senhor para
que dê voz aos Seus discípulos, hoje mudos. E para que seja reparado o roubo
intolerável pelo qual se tornaram responsáveis os administradores da Vinha do
Senhor.
Mas, para que esse roubo seja reparado, ocorre que nos demonstremos dignos dos
tesouros que nos foram roubados. Procuremos fazê-lo com a nossa santidade de
vida, com o exemplo das virtudes, com a oração e com a vida dos Sacramentos. E
não esqueçamos que existem centenas de bons sacerdotes que ainda sabem em que
consiste a Sagrada Unção com a qual foram ordenados Ministros de Cristo e
dispensadores dos Mistérios de Deus. O Senhor digna-se descer aos nossos
altares mesmo quando são erguidos em caves ou sótãos. Contrariis quibuslibet
minime obstantibus.
† Carlo Maria Viganò, Arcebispo
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«Tudo me é permitido, mas nem tudo é conveniente» (cf. 1Cor 6, 12).
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