No desenvolvimento da publicação do
Motu Proprio Traditionis Custodes, do Papa Francisco, sobre o uso da
liturgia anterior à reforma de 1970, o portal Dies Iræ entrevistou, em exclusivo, o P. Claude Barthe, sacerdote
perito em História da Liturgia, autor de diversas obras teológicas e
litúrgicas, entre as quais Histoire du missel tridentin et de
ses origines e La messe de Vatican II, e capelão da peregrinação internacional Summorum Pontificum.
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1. Permita-nos que, antes de mais, agradeçamos a Vossa Reverência por nos
conceder, em exclusivo, esta entrevista. São muitos os fiéis de língua
portuguesa que seguem de perto a dolorosa situação que se vive na Santa Igreja
e esta entrevista será, certamente, de grande utilidade para muitos. No passado
dia 16 de Julho, festa de Nossa Senhora do Carmo, o Papa Francisco publicou o
Motu Proprio Traditionis Custodes, que visa restringir a celebração da
Santa Missa segundo o rito que se baseia na tradição apostólica. Enquanto
liturgista, que reacção lhe merece este documento papal?
Esperavam-se restrições relativas à celebração do usus antiquior, mas
este documento, agravado pela carta do Santo Padre aos bispos que o acompanha,
surpreendeu-me pela sua dureza: afirma-se claramente que o fim pretendido é, em
última instância, o fim da liturgia tridentina, e os sacerdotes e fiéis apegados
a esta liturgia são tratados como perigosos para a unidade da Igreja.
Mas as reacções da opinião católica, e muito além das áreas
tradicionalistas, de repente, eis que se mostraram favoráveis à missa atacada. De facto, não se compreende como, hoje, no meio de uma crise gravíssima da instituição eclesiástica, se vem provocar a reabertura de velhas feridas e se corre o risco de iniciar uma nova guerra litúrgica.
2. No documento, o Papa Francisco afirma claramente que «os livros
litúrgicos promulgados pelos santos Pontífices Paulo VI e João Paulo II, em
conformidade com os decretos do Concílio Vaticano II, são a única expressão da
lex orandi do Rito Romano». O que lhe parece estar na origem desta
afirmação e, nesta atitude sectária, onde fica a salus animarum, tantas
vezes mencionada?
Com a sua pergunta, sublinha o ponto principal deste documento e que é doutrinal. Summorum Pontificum postulou que as duas liturgias eram
expressões da lex orandi. A afirmação baseava-se na hermenêutica da
reforma na continuidade professada por Bento XVI. Uma afirmação que poderia ser
qualificada de voluntarista, mas que permitiu estabelecer um genial compromisso
em favor da paz litúrgica na Igreja.
Traditionis Custodes considera, pelo contrário, que as duas liturgias, a
anterior ao Concílio e a posterior, são as traduções de dois estados da
doutrina católica que não podem ser combinados. Isto equivale a dizer que a
doutrina depois do Concílio e aquela antes do Concílio não são compatíveis.
Certamente, é mais realista, mas, ao mesmo tempo, também reactiva a guerra das
liturgias.
No futuro imediato, o novo motu proprio será provavelmente muito prejudicial
para a proliferaçã da missa tridentina e vai gerar novas perseguições. Mas do mal surge
sempre um bem maior: a questão das inovações trazidas pelo Vaticano II volta ao
primeiro plano. E, no final, será necessário reconhecer que a divisão da Igreja
é provocada não pela antiga doutrina, mas pela nova doutrina, não pela antiga liturgia, mas pela nova liturgia.
3. Não pode este documento ter um efeito contrário, isto é, não poderemos vir a
assistir a um ainda maior crescimento do número de sacerdotes e fiéis
interessados em conhecer a Santa Missa segundo os livros litúrgicos anterior à
reforma do Vaticano II? A Tradição “voltou” para ficar?
Isso também pode acontecer, de facto. Já tenho o exemplo de dois jovens
sacerdotes que, chocados com o Traditionis Custodes, decidiram aprender a
rezar a missa tridentina!
Penso que, no fundo, esta tentativa de eliminar a missa tradicional - aliás, hoje cada mais
viva, cinquenta anos depois da reforma litúrgica - é uma tentativa desesperada. O bugninismo
falhou: a reforma que fabricou é de uma insipidez extrema; esvaziou as igrejas
ou, pelo menos, não impediu que se esvaziassem; e a concorrência da antiga
liturgia nunca cessou.
Mais: a publicação deste motu proprio é mesmo uma espécie de consagração
para o usus antiquior, pois ele aparece agora com uma importância ainda maior do que aqueles
que a ele estão ligados pensavam que tivesse, visto que até se julga ser necessário travar contra ele uma guerra de
extermínio.
4. Na sua obra A Reforma da Liturgia Romana, o sacerdote e liturgista
Klaus Gamber refere, a certa altura, que, depois da reforma litúrgica do
Concílio Vaticano II, o rito tradicional foi proibido. É consensual no mundo da
tradição que o Rito Romano antigo nunca foi proibido, existindo, isso sim, uma
espécie de “proibição oficiosa”, mas nunca oficial. Como é que se pode
“proibir” um rito multissecular?
Klaus Gamber tinha razão: Paulo VI quis abolir a missa tridentina. Normalmente,
de facto, uma nova lei litúrgica abole as disposições anteriores relativas ao
mesmo objecto: por exemplo, Pio XI, em 1929, deu uma nova missa do Sagrado
Coração, que vinha abolir a antiga. O problema da liturgia de Paulo VI – além dos seus enfraquecimentos doutrinais – está na sua radicalidade. Efectivamente,
encontramo-nos em 1969 na presença de um novo rito: «Demolimos o antigo
edifício para construir outro, ainda que, em grande medida, utilizando certamente o
material e os planos da velha construção», escreveu Joseph Ratzinger em La
mia vita. Depois, já como Bento XVI, pôde legitimamente
sustentar, em Summorum Pontificum, que a última edição típica do missal
tridentino, a de 1962, nunca havia sido ab-rogada.
Por outras palavras: um rito litúrgico pode perfeitamente evoluir e, com
efeito, evoluir organicamente; mas não pode ser abolido desta maneira.
5. Desde 2012, as peregrinações Summorum Pontificum reúnem, na Cidade
Eterna, incontáveis católicos, entre clérigos, religiosos e fiéis, provenientes
de todo o mundo, que reafirmam a sua adesão à Sé de Pedro e renovam o seu amor
à Tradição da Igreja. A próxima edição, que se realizará em Outubro, terá um
significado diferente depois da promulgação de Traditionis Custodes?
Ainda faz sentido manter a designação Summorum Pontificum?
A peregrinação acontecerá. Preciso dizer que será importante lá estar? E faço votos e confio que o valente Portugal estará muito bem representado.
6. Muitos são os católicos escandalizados e desanimados perante este ataque à
Sagrada Liturgia de sempre. O que gostaria de lhes transmitir a concluir esta
entrevista?
Gostaria de lhes dizer que mantenham, com a graça de Deus, uma grande
determinação. Os ataques contra a antiga liturgia começaram com a reforma
litúrgica. Houve desde então momentos muito difíceis, especialmente nos vinte
anos que se seguiram ao Concílio. Mas a constância e a firmeza dos fiéis, dos sacerdotes, de
alguns bispos, permitiu-lhe viver e prosperar. É uma bela manifestação do
instinto da fé, do sensus fidelium. Mantenhamos, pois, todos, uma esperança plena e inteira.
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