A Senhora dos Peregrinos que rompe os esquemas tradicionais

A humanidade visitada e redimida pelo divino. Em poucas palavras, poder-se-ia traduzir com esta expressão a visão do admirável retábulo que Caravaggio realizou para a capela Cavalletti, a primeira ao entrar à esquerda, da Igreja de Santo Agostinho em Roma. Corria o ano de 1602 quando, por legado testamentário, Merisi recebeu a importante encomenda e por volta de 1604 quando a pintura foi colocada no altar romano: desde então, a obra nunca foi removida apesar do “alarido” que, segundo os biógrafos do pintor, havia suscitado entre os seus contemporâneos.       

Independentemente da iconografia tradicional, o mestre abordou o tema solicitado – Nossa Senhora de Loreto, destino da peregrinação mariana por antonomásia – de forma completamente surpreendente para a época, diminuindo a visão miraculosa da Virgem com o Seu Filho num ângulo da Roma seiscentista. O costume teria querido que Maria fosse retratada no telhado da Sua casa, rodeada de anjos que, em voo, a transportam para, finalmente, chegar à costa do Adriático: a interpretação de Caravaggio aparece, portanto, tanto quanto se poderia imaginar, a partir desta representação canónica.         

Na tela, uma mulher, belíssima, aparece à porta de uma casa, humilde a julgar pelo estado da parede externa em cuja superfície o gesso descascado revela os tijolos. Está de pé no degrau e segura o bebé nos braços, nu e envolto num pano branco, mancha de cor que ilumina os tons castanhos da composição. Acima da sua cabeça, uma linha delicada desenha uma subtil auréola, indício que nos permite reconhecer nela a Santíssima Virgem. Que é Mãe, antes de mais nada, como se pode ver naquele abraço, acompanhado da postura que, identificada com extremo realismo, lhe permite suportar o evidente peso do Filho.       

Ambos têm o olhar voltado para baixo, onde dois peregrinos estão ajoelhados diante deles, com as mãos unidas em oração. Cada um tem um bastão que os identifica como tal, assim como os pés sujos do homem, que tanto caminho percorreu para lá chegar. São dois plebeus: as roupas, a touca da mulher «suja e rasgada», como escreveu um crítico da época, confirmam-no.          

A sua humildade, tão vividamente expressa pelo pintor, é a condição que permite, enfim, a satisfação daquele desejo que sustentou o cansaço da viagem, do caminho. As feições do jovem reflectem, de facto, as do comitente que, certamente, não era pobre. E, na senhora idosa ao seu lado, é plausível reconhecer a mãe. É, pois, uma atitude, uma predisposição da alma que Caravaggio aqui representa: a simplicidade de quem se descobre criatura que precisa de tudo e que só consente ao divino saciar a sede de amor e de felicidade que é própria do coração de cada homem.        

A luz faz o resto. Tecnicamente, na tela, plasma as figuras, acariciando-as de lado e fazendo-as emergir da escuridão do fundo, vindo, como sempre, do lado esquerdo do quadro. Artisticamente, indica a presença de Deus que, investindo o pequeno Jesus, irradia sobre quem se dispõe a implorá-la e acolhê-la. Por meio de Maria.

Margherita del Castillo        

Através de La Nuova Bussola Quotidiana          

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