«O Deus dos nossos pais
ressuscitou Jesus, a quem matastes, suspendendo-o num madeiro» (Act 5, 30).
Ticianus Faciebat/MDXXII lê-se no mármore polido da coluna na cena do
martírio de São Sebastião que, com outros painéis, compõe o esplêndido
políptico de Averoldi, encomendado ao mestre pelo homónimo e poderoso prelado, Núncio
Apostólico junto da Sereníssima[1],
para ser colocado no altar da igreja bresciana, onde ainda hoje se encontra. É
um jovem Ticiano que afronta, para a ocasião, um formato pictórico obsoleto,
conseguindo superar a tradicional divisão em compartimentos quatrocentistas
através da sapiente referência dos gestos e olhares dos protagonistas. A Ressurreição
de Cristo é o tema principal, em torno do qual, seguindo um preciso programa
teológico, se dispõem a Anunciação e as figuras dos santos.
No registo superior, um belíssimo arcanjo anunciante, que a alvura das vestes faz
emergir da escuridão do fundo, desenrola uma cartela com as palavras dirigidas
à Virgem, que, no canto oposto da pintura, inclina docemente a cabeça,
preparando-se humildemente para aceitar a inescrutável vontade de Deus, que se
realiza naquele instante, dando início aos acontecimentos dos quais a
Ressurreição é o glorioso final.
Ticiano renova a tradição iconográfica: não reproduz o sepulcro vazio nem
retrata Jesus no sepulcro descoberto. Em vez disso, concentra-se no poder do
Filho de Deus que, fazendo-se homem, verdadeiramente morto por cada um de nós,
finalmente ressuscita, cumprindo uma acção que já alude à Sua ascensão.
O corpo triunfante de Cristo é o ponto de luz que ilumina a paisagem imersa num
pôr-do-sol tempestuoso. Balança-se no ar, poderoso e magnífico, segurando,
entre as mãos, a bandeira da vitória, uma cruz vermelha num campo branco, cujo
tecido, a par do pano branco, é preenchido com ar a significar o crescente
movimento. Jesus está a subir em toda a fisicalidade do seu ser homem, libertando
uma incrível energia vital, subindo ao céu com tal realismo que parece lá
estar.
São os soldados as primeiras testemunhas oculares. Estão num canto, em contraluz.
Atónitos e consternados, retrata-os Ticiano, o olhar dirigido para o alto,
incrédulos com o prodígio que está a acontecer sob o seu olhar e do qual, ao identificarmo-nos
com o comitente retratado no painel inferior, nos tornamos participantes.
Enquanto os santos aqui presentes – o mártir Sebastião, por um lado, e os titulares
da colegiada, Nazário e Celso, por outro – são um sinal do poder salvador da
Paixão e da Ressurreição, prova irrefutável de que vale a pena viver e morrer
por Cristo.
Enfim, até a natureza reage a este extraordinário acontecimento: os brilhos de
que é canelado o esplêndido nocturno anunciam, de facto, o amanhecer do dia e do
novo tempo que, agora e para sempre, vêm.
Margherita del Castillo
Através de La Nuova Bussola Quotidiana
[1] A autora refere-se à Sereníssima
República de Veneza, existente entre os séculos VII e XVIII.
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«Tudo me é permitido, mas nem tudo é conveniente» (cf. 1Cor 6, 12).
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