A pedido de Sua Eminência o Cardeal Raymond Leo Burke, o portal Dies Iræ traduziu e disponibiliza, em exclusivo para língua portuguesa, uma declaração de Sua Eminência sobre a recepção da Sagrada Comunhão por aqueles que persistem em pecado público grave.
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Muitos católicos e também não-católicos que,
embora não abracem a fé católica, respeitam a Igreja Católica pelos seus
ensinamentos sobre a fé e a moral, perguntaram-me como é possível aos católicos
receber a Sagrada Comunhão ao mesmo tempo que promovem, pública e
obstinadamente, programas, políticas e legislação que estão em directa violação
da lei moral. Em particular, perguntam como é que os políticos e os funcionários
civis católicos que, pública e obstinadamente, defendem e promovem a prática do
aborto a pedido se podem aproximar para receber a Sagrada Comunhão. A sua
pergunta aplica-se claramente também aos católicos que promovem publicamente
políticas e leis que violam a dignidade da vida humana daqueles que sofrem de
doenças graves, necessidades especiais ou idade avançada, e que violam a
integridade da sexualidade humana, do matrimónio e da família, ou que violem a livre
prática da religião.
A questão merece uma resposta, especialmente porque toca nos próprios
fundamentos do ensinamento da Igreja a respeito da fé e da moral. Acima de
tudo, diz respeito à Sagrada Eucaristia, «[o] Sacramento da Caridade […] a
doação que Jesus Cristo faz de Si mesmo, revelando-nos o amor infinito de Deus
por cada homem. […] Jesus continua a amar-nos “até ao fim”, até ao dom do seu
corpo e do seu sangue»[1].
É minha esperança que os seguintes pontos do ensinamento da Igreja sejam úteis
para aqueles que estão justamente confusos e, na verdade, frequentemente escandalizados
por esta demasiado comum traição pública do ensinamento da Igreja sobre a fé e
a moral por aqueles que professam ser católicos. Vou abordar a questão do
aborto procurado, mas os mesmos pontos aplicam-se a outras violações da lei
moral.
1. Quanto à Sagrada Eucaristia, a Igreja sempre acreditou e ensinou que
a Sagrada Hóstia é o Corpo, Sangue, Alma e Divindade de Cristo, o Filho de Deus
Encarnado. A fé da Igreja é assim expressa pelo Concílio de Trento: «Porque Cristo
nosso Redentor disse que era verdadeiramente o seu Corpo que Ele oferecia sob
as espécies de pão [cf. Mt 26, 26-29; Mc 14, 22-25; Lc 22, 19; 1 Cor 11, 24-26],
sempre foi a convicção da Igreja de Deus, e este santo concílio agora declara
novamente, que, pela consagração do pão e do vinho, ocorre uma mudança de toda
a substância do pão na substância do Corpo de Cristo nosso Senhor e de toda a
substância do vinho na substância do seu Sangue» (Sessão 13, Capítulo 4)[2].
Portanto, como ensina claramente São Paulo na sua Primeira Carta aos Coríntios:
«Assim, todo aquele que comer o pão ou beber o cálice do Senhor indignamente
será réu do corpo e do sangue do Senhor» (1 Cor 11, 27).
2. A recepção da Sagrada Comunhão por aqueles que violam, pública e
obstinadamente, a lei moral nos seus mais fundamentais preceitos é uma
particularmente grave forma de sacrilégio. Nas palavras do Catecismo da
Igreja Católica, «o sacrilégio é um pecado grave, sobretudo quando é
cometido contra a Eucaristia, pois que, neste sacramento, é o próprio corpo de
Cristo que Se nos torna presente substancialmente» (n. 2120). Não só faz
merecer o castigo eterno a quem recebe indignamente, mas constitui um escândalo
gravíssimo para os outros, isto é, leva-os à falsa crença de que se pode violar,
pública e obstinadamente, a lei moral em matéria grave e receber, ainda assim, Nosso
Senhor na Sagrada Comunhão. Uma pessoa razoável, diante de tal situação, tem de
concluir que ou a Sagrada Hóstia não é o Corpo de Cristo ou que a promoção do
aborto procurado, por exemplo, não é um pecado grave.
3. O cân. 915 do Código de Direito Canónico, que repete o ensinamento perene
e imutável da Igreja, dispõe: «Não sejam admitidos à sagrada comunhão os
excomungados e os interditos, depois da aplicação ou declaração da pena, e
outros que obstinadamente perseverem em pecado grave manifesto.»[3] A
negação da Sagrada Comunhão não é uma pena eclesiástica, mas o reconhecimento
do estado objectivamente indigno de uma pessoa para se aproximar a fim de
receber a Sagrada Comunhão. A disciplina contida no cân. 915 salvaguarda a
santidade da realidade mais sagrada na Igreja, a Sagrada Eucaristia, impede a
pessoa que persevera obstinadamente em pecado grave de cometer o pecado adicional
e gravíssimo de sacrilégio, profanando o Corpo de Cristo, e impede o escândalo
inevitável que resulta da recepção indigna da Sagrada Comunhão.
4. Os sacerdotes e os Bispos têm o dever de instruir e admoestar os
fiéis que se encontram nas condições descritas no cân. 915, para evitar que se
aproximem para receber a Sagrada Comunhão e venham, assim, a cometer esse
gravíssimo sacrilégio, o que resultaria no seu próprio dano eterno e, a par
disso, em levar outros ao erro e, até mesmo, ao pecado em assunto de tamanha
seriedade. Se uma pessoa foi admoestada e, ainda assim, persevera em grave
pecado público, não pode ser admitida para receber a Sagrada Comunhão.
5. Claramente, nenhum sacerdote ou Bispo pode conceder permissão para
receber a Sagrada Comunhão, a uma pessoa que está em pecado grave público e obstinado.
Tampouco se trata de uma discussão entre o sacerdote ou Bispo e aquele que
comete o pecado, mas sim de uma questão de admoestação sobre verdades de fé e
de moral por parte do sacerdote ou do Bispo, e de uma questão de reforma de uma
consciência errónea por parte do pecador.
6. O Papa São João Paulo II apresentou o ensinamento constante da Igreja
sobre o aborto procurado na sua Carta Encíclica Evangelium Vitæ.
Referindo-se à consulta dos Bispos da Igreja universal sobre o assunto na sua
carta do Pentecostes de 1991, declarou: «Portanto, com a autoridade que Cristo
conferiu a Pedro e aos seus Sucessores, em comunhão com os Bispos – que de
várias e repetidas formas condenaram o aborto e que, na consulta referida
anteriormente, apesar de dispersos pelo mundo, afirmaram unânime consenso sobre
esta doutrina – declaro que o aborto directo, isto é, querido como fim ou
como meio, constitui sempre uma desordem moral grave, enquanto morte
deliberada de um ser humano inocente.»[4] Deixou também
claro que o seu ensinamento «está fundado sobre a lei natural e sobre a Palavra
de Deus escrita, é transmitido pela Tradição da Igreja e ensinado pelo
Magistério ordinário e universal»[5].
7. Às vezes, argumenta-se que um político católico pode acreditar
pessoalmente na imoralidade do aborto, ao mesmo tempo que defende uma política
pública que prevê o chamado aborto “legalizado”. Esse foi o caso, por exemplo,
nos Estados Unidos da América, do encontro que reuniu certos teólogos morais católicos,
que adoptaram a errónea teoria moral do proporcionalismo ou consequencialismo,
e políticos católicos, realizado no complexo da Família Kennedy, em
Hyannisport, Massachusetts, no Verão de 1964[6]. O Papa
São João Paulo II responde claramente a esse pensamento moral erróneo em Evangelium
Vitæ: «Nenhuma circunstância, nenhum fim, nenhuma lei no mundo poderá
jamais tornar lícito um acto que é intrinsecamente ilícito, porque contrário à
Lei de Deus, inscrita no coração de cada homem, reconhecível pela própria
razão, e proclamada pela Igreja.»[7] Na sua
Carta Encíclica Splendor Veritatis, o Papa São João Paulo II corrige o
erro fundamental do proporcionalismo e do consequencialismo[8].
8. É dito, por vezes, que a negação da Sagrada Comunhão aos políticos
que obstinadamente perseveram em pecado grave é o uso da Sagrada Comunhão pela
Igreja para fins políticos. Pelo contrário, é solene responsabilidade da Igreja
salvaguardar a santidade da Sagrada Eucaristia, prevenir que os fiéis cometam sacrilégio
e prevenir o escândalo entre os fiéis e outras pessoas de boa vontade.
9. Na verdade, quem usa a Sagrada Eucaristia para fins políticos é o
político católico que, pública e obstinadamente, promove o que é contrário à
lei moral e ainda ousa receber sacrilegamente a Sagrada Comunhão. Por outras
palavras, o político apresenta-se a si mesmo como um católico devoto, ao passo
que a verdade, afinal, é completamente diferente.
10. Além da negação da Sagrada Comunhão a pessoas que violam pública e
obstinadamente a lei moral, há também a questão da imposição ou declaração de
uma justa pena eclesiástica para chamar a pessoa à conversão e para reparar o
escândalo que as suas acções causam.
11. Aqueles que violam pública e obstinadamente a lei moral,
encontram-se, pelo menos, em estado de apostasia, isto é, abandonaram efectivamente
a fé pela recusa obstinada, na prática, de viver de acordo com as verdades fundamentais
da fé e da moral (cf. cân. 751). Um apóstata da fé incorre automaticamente na
pena de excomunhão (cf. cân. 1364). O Bispo de tal pessoa deve verificar as condições
para a declaração da pena de excomunhão em que se incorreu automaticamente.
12. Também podem ser heréticos, se obstinadamente negam ou duvidam da
verdade sobre o mal intrínseco do aborto, visto que nisso «se deve crer com fé
divina e católica» (cân. 751)[9]. A
heresia, como a apostasia, leva a que se incorra automaticamente na pena de excomunhão
(cf. cân. 1364). Também no caso de heresia, o Bispo deve verificar as condições
para a declaração da pena de excomunhão em que se incorreu automaticamente.
Em suma, a disciplina da Igreja, começando com o Apóstolo Paulo, ensinou
consistentemente qual a necessária disposição da consciência para a recepção da
Sagrada Comunhão. O não cumprimento da disciplina resulta na profanação da mais
sagrada realidade na Igreja – o Corpo, Sangue, Alma e Divindade de Cristo –,
constitui o gravíssimo pecado de sacrilégio e causa um gravíssimo escândalo
pela falta de testemunho em relação à verdade da Sagrada Comunhão e à verdade em
matéria moral, por exemplo, no que tange à inviolável dignidade da vida humana,
à integridade do matrimónio e da família, e à liberdade de adorar a Deus «em
espírito e verdade»[10].
A resposta à questão que me tem sido colocada tão frequentemente, é clara: um católico
que, pública e obstinadamente, se opõe à verdade em matéria de fé e de moral
não se pode apresentar para receber a Sagrada Comunhão, e nem o ministro da
Sagrada Comunhão lhe pode dar o Sacramento.
Raymond Leo Cardeal BURKE
Roma, 7 de Abril de 2021
[1] «Sacramentum caritatis, … donum est
Iesu Christi se ipsum tradentis, qui Dei infinitum nobis patefacit in singulos
homines amorem... Eodem quidem modo in eucharistico Sacramento Iesus «in
finem», usque scilicet ad corpus sanguinemque tradendum, diligere nos pergit»
– Benedictus PP. XVI,
Adhortatio Apostolica Postsynodalis Sacramentum caritatis, “De
Eucharistia vitæ missionisque Ecclesiæ fonte et culmine”, 22 Februarii 2007, Acta
Apostolicæ Sedis 99 (2007) 105, n. 1. Tradução portuguesa: http://www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/apost_exhortations/documents/hf_ben-xvi_exh_20070222_sacramentum-caritatis.html.
[2] «Quoniam autem Christus redemptor
noster corpus suum id, quod sub specie panis offerebat [cf. Mt 26:26-29; Mc
14:22-25; Lc 22:19s; 1 Cor 11:24-26], vere esse dixit, ideo persuasum semper
in Ecclesia Dei fuit, idque nunc denuo sancta hæc Synodus declarat: per
consecrationem panis et vini conversionem fieri totius substantiæ panis in
substantiam corporis Christi Domini nostri, et totius substantiæ vini in
substantiam sanguinis eius». Tradução portuguesa: http://agnusdei.50webs.com/trento.htm.
[3] «Can.
915: Ad sacram communionem ne admittantur excommunicati et interdicti post
irrogationem vel declarationem poenæ aliique in manifesto gravi peccato
obstinate perseverantes» – Código de Direito Canónico, trad. António
Leite, S.J., 4.ª ed. (Braga: Editorial Apostolado da Oração, 2007), p. 165.
[4] «Auctoritate
proinde utentes Nos a Christo Beato Petro eiusque Successoribus collata,
consentientes cum Episcopis qui abortum crebrius respuerunt quique in superius
memorata interrogatione licet per orbem disseminati una mente tamen de hac ipsa
concinuerunt doctrina – declaramus abortum recta via procuratum, sive uti
finem intentum seu ut instrumentum, semper gravem præ se ferre ordinis moralis
turbationem, quippe qui deliberata exsistat innocentis hominis occisio»
– Ioannes
Paulus PP. II, Litteræ Encyclicæ Evangelium vitæ, “De vitæ humanæ
inviolabili bono”, 25 Martii 1995, Acta Apostolicæ Sedis 87 (1995) 472,
n. 62. Tradução portuguesa: http://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_25031995_evangelium-vitae.html.
[5] «[…] naturali innititur lege Deique
scripto Verbo, transmittitur Ecclesiæ Traditione atque ab ordinario et
universali Magisterio exponitur” – Evangelium vitæ, 472, n. 62.
[6] Cf. A. R. Jonsen,
The Birth of Bioethics (New York: Oxford University Press, 1998), pp.
290-291.
[7] «Nequit
exinde ulla condicio, ulla finis, ulla lex in terris umquam licitum reddere
actum suapte natura illicitum, cum Dei Legi adversetur in cuiusque hominis
insculptæ animo, ab Eccesia prædicatæ, quæ potest etiam ratione agnosci» – Evangelium
vitæ, 472, n. 62.
[8] Cf. Ioannes Paulus PP. II, Litteræ Encyclicæ
Veritatis splendor, De quibusdam quæstionibus fundamentalibus doctrinæ
moralis Ecclesiæ, 6 Augusti 1993, Acta Apostolicæ Sedis 85 (1993)
1192-1197, nn. 74-78. Tradução portuguesa:
http://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_06081993_veritatis-splendor.html.
[9] «Can
751: […] fide divina et catholica credendæ» – Código de Direito Canónico,
trad. António Leite, S.J., 4.ª ed. (Braga: Editorial Apostolado da Oração, 2007),
p. 138.
[10] Jo 4, 23-24.
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