Por ocasião do 8.º aniversário da
eleição pontifícia do Papa Francisco, ocorrida a 13 de Março de 2013, tornando-se
no 266.º Papa da Igreja Católica depois da inesperada renúncia de Bento XVI, o
portal noticioso da Fraternidade Sacerdotal de São Pio X realizou uma notável
entrevista ao seu Superior-Geral, o italiano P. Davide Pagliarani, eleito em
Julho de 2018 para o cargo. Considerada a pertinência do conteúdo, o portal
Dies Iræ traduziu e disponibiliza aos seus leitores o texto em
português.
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Reverendo Superior-Geral, o Papa
Francisco subiu ao trono de São Pedro há oito anos e, por ocasião deste
aniversário, o senhor aceitou conceder-nos esta entrevista: agradecemos-lhe. Para
alguns observadores do pontificado de Francisco, em particular aqueles ligados
à Tradição, parece que se tenha concluído a batalha das ideias: segundo eles, é
a práxis a dominar, isto é, a acção concreta, inspirada num pragmatismo total.
O que acha?
Não estou totalmente seguro de que se devam colocar em oposição deste modo acções
e ideias. O Papa Francisco é, certamente, muito pragmático; mas, sendo um homem
de governo, sabe perfeitamente para onde vai. Uma acção de grande amplitude é
sempre inspirada por princípios teóricos, por um conjunto de ideias, muitas
vezes dominado por uma ideia central com a qual cada práxis pode e deve estar
relacionada.
É preciso reconhecer: os esforços para compreender os princípios do pragmatismo
de Francisco não se fazem sem hesitação. Por exemplo, alguns pensaram em
encontrar os seus princípios de acção na teologia del pueblo, uma
variante argentina – muito mais moderada – da teologia da libertação... Na
verdade, por quanto me parece, Francisco situa-se além deste sistema e também
de qualquer sistema conhecido. Creio que o pensamento que o anima não possa ser
analisado e interpretado de modo satisfatório se nos limitarmos aos critérios
teológicos tradicionais. Francisco não está apenas para além de qualquer
sistema conhecido, mas acima.
O que quer dizer?
Com João Paulo II, por exemplo, apesar de tudo o que podemos deplorar,
certos pontos da doutrina católica permaneceram intocáveis. Com Bento XVI,
ainda tivemos que lidar com um espírito ligado às raízes da Igreja. O seu considerável
esforço para fazer a quadratura do círculo, embora fadado ao fracasso, conciliando
a Tradição com o ensinamento conciliar, revelava, todavia, uma preocupação de fidelidade
à Tradição. Com Francisco, tal preocupação já não existe. O pontificado que
vivemos é uma viragem histórica para a Igreja: alguns baluartes que ainda
existiam foram demolidos para sempre – humanamente falando; paralelamente, a
Igreja redefiniu, revolucionando-a, a sua missão para com as almas e o mundo.
É ainda muito cedo para analisar o alcance desta reviravolta em toda a sua
amplitude, mas já nos podemos esforçar para analisá-la.
Pecado e misericórdia
Disse que alguns bastiões que ainda existiam foram demolidos. A que se refere?
Estou a pensar nos últimos fundamentos de ordem moral sobre os quais estava
estabelecida não só a sociedade cristã, mas cada sociedade natural. Mais cedo
ou mais tarde, isto deveria acontecer, era apenas uma questão de tempo. Até então,
apesar de certas aproximações, a Igreja mantinha, com uma determinada firmeza,
as próprias exigências morais, em relação ao matrimónio cristão, por exemplo, e
ainda condenava claramente todas as perversões sexuais... mas estas exigências baseavam-se,
infelizmente, numa teologia dogmática desviada da sua finalidade e, portanto, tornada
instável: era inevitável que, mais cedo ou mais tarde, essas vacilassem. Os
princípios de acção não podem ser mantidos estáveis por muito tempo quando a
ideia que se tem do seu divino Autor é enfraquecida ou distorcida. Estes
princípios morais poderiam sobreviver por algum tempo, algumas décadas, mas,
agora sem a sua coluna vertebral, estavam destinados a ser, um dia, “superados”,
praticamente negados. Estamos a assistir a isso sob o pontificado de Francisco,
em particular com a exortação apostólica Amoris lætitia (19 de Março de 2016). Este texto não contém apenas graves erros;
manifesta uma abordagem historicista completamente nova.
De que abordagem se trata? O que teria determinado tal escolha?
O Papa Francisco tem uma visão geral muito precisa da sociedade contemporânea,
da Igreja de hoje e, em última análise, de toda a história. Parece-me afectado
por uma espécie de hiper-realismo que se pretende “pastoral”. Segundo ele, a
Igreja deve-se render à evidência: é-lhe impossível continuar a pregar uma
doutrina moral como a que tem pregado até agora. Deve decidir-se a capitular diante
das necessidades do Homem de hoje e, consequentemente, a repensar a própria
maternidade.
Certamente, a Igreja deve ser sempre mãe: mas, em vez de o ser transmitindo a
vida e educando os seus filhos, sê-lo-á na medida em que os saberá aceitar como
são, ouvir, compreender e acompanhar… Estas preocupações, que não são más em si
mesmas, devem aqui ser entendidas num sentido novo e muito particular: a Igreja
não pode mais impor-se e, consequentemente, não devo mais fazê-lo. É passiva e adapta-se.
A vida eclesial, de forma a ser vivida hoje, condiciona e determina a própria
missão da Igreja, até a sua razão de ser. Por exemplo, uma vez que já não pode
exigir as mesmas condições de outrora para aceder à Sagrada Eucaristia, visto
que o Homem moderno vê nela uma intolerável intolerância, a única reacção
realista e autenticamente cristã, nesta lógica, consiste em adaptar-se a esta situação
e redefinir as suas exigências. Assim, inevitavelmente, a moral muda: as leis
eternas estão sujeitas a uma evolução tornada necessária pelas circunstâncias
históricas e pelos imperativos de uma caridade falsa e incompreendida.
Na sua opinião, o Papa vive com algum mal-estar esta evolução? Sente
necessidade de justificá-la?
O Papa deveria, sem dúvida, ser consciente, desde o início, das reacções que
tal processo provocaria na Igreja. Provavelmente, também está ciente de ter
aberto portas que, durante dois mil anos, permaneceram trancadas. Mas nele, as exigências
históricas superam qualquer outra consideração.
Nesta perspectiva, a ideia de “misericórdia”, omnipresente nos seus discursos,
adquire todo o seu valor e significado: já não se trata da resposta de um Deus
de amor, que acolhe de braços abertos o pecador arrependido, para regenerá-lo e
dar-lhe a vida da graça; trata-se, agora, de uma misericórdia fatal, que se
tornou necessária para responder às urgentes necessidades da humanidade. Já
considerados incapazes de respeitar até a lei natural, os Homens têm um pleno
direito de receber esta misericórdia, uma espécie de amnistia condescendente de
um Deus que também se adapta à história já sem dominá-la.
Deste modo, já não se renuncia apenas à fé ou à ordem sobrenatural, mas também
aos princípios morais indispensáveis para uma vida honesta e justa. Tudo isto
é assustador também porque se traduz numa renúncia definitiva à cristianização
dos costumes: pelo contrário, os cristãos passam a adoptar os costumes do mundo
ou, pelo menos, devem adaptar – caso a caso – a lei moral aos costumes actuais,
aqueles dos divorciados “recasados” ou das parelhas do mesmo sexo.
Esta misericórdia tornou-se, assim, uma espécie de panaceia, fundamento de uma
nova evangelização a ser proposta a um século que já não se pode converter e a
cristãos aos quais já não se pode impor o jugo de todos os Mandamentos. Assim,
as almas em perigo, em vez de serem encorajadas e fortalecidas na sua fé, são
tranquilizadas e encorajadas em situações de pecado. Assim fazendo, o guardião
da fé abole também a ordem natural: não resta mais nada.
O que está por trás destes erros é a ausência total de transcendência, de
verticalidade. Já não há nenhuma referência, nem mesmo implícita, ao
sobrenatural, à vida após a morte, à graça e, sobretudo, à redenção de Nosso
Senhor, que providenciou definitivamente a todos os Homens os meios necessários
à sua salvação. A eficácia perene destes meios já não é predicada nem
conhecida. Já não se acredita mais nisso! Consequentemente, tudo se reduz a uma
visão puramente horizontal, historicista, na qual as contingências prevalecem
sobre os princípios e onde só conta o bem-estar terreno.
Essa viragem de que falou ainda está na linha do Concílio ou já pertence a
um Concílio Vaticano III que ainda não aconteceu?
Há, ao mesmo tempo, uma continuidade com as premissas postas no Concílio e uma
superação das mesmas. Isto por um motivo muito simples. Com o Concílio, a
Igreja quis-se adaptar ao mundo, actualizar-se graças ao aggiornamento
promovido por João XXIII e Paulo VI. O Papa Francisco continua esta adaptação
ao mundo, mas num sentido novo e extremo: actualmente, a Igreja adapta-se ao
pecado do próprio mundo, pelo menos enquanto esse pecado é “politicamente correcto”;
depois, é apresentada como uma autêntica expressão de amor, sob todas as formas
admitidas pela sociedade contemporânea e permitidas por um Deus misericordioso.
Sempre caso a caso, mas estes casos excepcionais são chamados a tornar-se a
norma, como já se constata na Alemanha.
Utopia do Papa
Francisco
Ao lado desta aniquilação progressiva da moral tradicional, o Papa Francisco
propõe valores a cultivar? Por outras palavras, na sua opinião, sobre que fundamento
quer construir?
Esta é uma pergunta muito pertinente, à qual o próprio Papa respondeu na sua
última Encíclica, Fratelli tutti (3 de Outubro de 2020), propondo-se a «aceitar
o desafio de sonhar e pensar numa humanidade diferente. (…) Este é o
verdadeiro caminho da paz»[1].
É o que chamamos de utopia e é o que acontece com todos aqueles que cortam as próprias
raízes: o Papa, rompendo com a divina Tradição, aspira a uma perfeição ideal e
abstracta, desligada da realidade.
Claro, nega fazê-lo e, na mesma passagem, embora admitindo que as suas palavras
«parecerão um devaneio», especifica sobre que fundamento pretende apoiar-se:
«o grande princípio dos direitos que brotam do simples facto de possuir a
inalienável dignidade humana». Mas, precisamente, a Revelação e a Tradição ensinam-nos
que a natureza humana não é suficiente em si mesma. Como diz Chesterton, «tirem
o sobrenatural e restará apenas o que não é natural»[2].
Sem Deus, a natureza sozinha tende a tornar-se, na prática, “contranatura”;
porque, chamando e elevando o Homem à ordem sobrenatural, Deus ordenou a
natureza à graça, de modo que a natureza não se pode afastar da ordem
sobrenatural sem introduzir uma profunda desordem em si mesma. O sonho de Francisco
é profundamente naturalista.
Outro sinal do seu carácter utópico é que o sonho assume um alcance universalista:
trata-se de impô-lo a todos, de modo autoritário e absoluto. Sendo concebidos
de modo artificial, os sonhos não podem ser impostos, excepto de modo artificial…
Mas em que consistiria a utopia do Papa Francisco?
Em perfeita osmose com as aspirações do Homem moderno, imbuída dos próprios
direitos e cortada das suas raízes, esta utopia resume-se em duas ideias: a da ecologia
integral e a da fraternidade universal. Não foi por acaso que o Papa
dedicou a estes temas duas Encíclicas-chave, das quais afirma que caracterizam
as duas partes principais do seu pontificado.
A ecologia integral de Laudato si’ (24 de Maio de 2015) nada mais é do
que uma nova moral proposta a toda a humanidade, abstraindo-se da Revelação e, por
conseguinte, do Evangelho. Os princípios são puramente arbitrários e
naturalistas. Concordam sem problemas com as aspirações ateístas de uma humanidade
apaixonada pela terra em que vive e mergulhada em preocupações puramente
materiais.
E a fraternidade universal de Fratelli tutti, exaltada pelo Papa de
forma muito solene com a declaração de Abu Dhabi, assinada juntamente com o
grande imã de Al-Azhar (4 de Fevereiro de 2019), nada mais é do que uma
caricatura naturalista da fraternidade do cristianismo, fundada sobre a
paternidade divina comum a todos os Homens redimidos por Cristo. Esta fraternidade
é materialmente idêntica à da maçonaria, que, durante os últimos dois séculos,
nada fez senão semear o ódio, particularmente contra a Igreja, numa vontade
feroz de substituir-se à única fraternidade verdadeiramente possível entre os Homens.
Não é apenas a negação da ordem sobrenatural que traria a Igreja de volta às
dimensões de uma ONG filantrópica, é também o desconhecer as feridas do pecado
original e esquecer a necessidade da graça para restaurar a natureza decaída e
promover a paz entre os Homens.
De que modo, neste contexto, ainda se poderia distinguir o papel da Igreja
do da sociedade civil?
Hoje, a Igreja Católica oferece a imagem de um poder sacerdotal ao serviço do mundo
contemporâneo e das suas necessidades sociopolíticas... Mas este sacerdócio já
não tem como finalidade cristianizar as instituições nem reformar os costumes regressados
ao paganismo; trata-se de um sacerdócio tragicamente humano, sem qualquer
dimensão sobrenatural. Paradoxalmente, a sociedade civil e a Igreja
encontram-se, assim, como no tempo da cristandade, associadas na luta, lado a
lado, por objectivos comuns... mas, desta vez, é uma sociedade laicizada que
sugere e impõe à Igreja as suas próprias visões e o seu próprio ideal. É
alucinante: o humanitarismo laico tornou-se a luz da Igreja, o sal que lhe dá o
seu sabor. A desordem doutrinal e moral dos últimos anos traduz bem este
complexo de inferioridade que os clérigos cultivam em relação ao mundo moderno.
No entanto – é o mistério da fé e é a nossa esperança –, a Igreja é santa, é
divina, é eterna: apesar das tristezas da hora presente, a sua vida íntima, no
que tem de mais elevado, é, certamente, de uma beleza que arrebata Deus e os
anjos. Hoje, como sempre, a Igreja dispõe, em plenitude, de todos os meios necessários
para guiar e santificar!
Necessidade de Cristo
Rei
Na sua opinião, com quais meios é que a Igreja se pode livrar de tais erros
e regenerar-se?
Em primeiro lugar, é necessário renunciar às utopias e regressar à realidade, regressar
às raízes da Igreja. Poder-se-iam identificar três pontos-chave que a Igreja
deve recuperar e que deve recomeçar a pregar sem concessões e sem complexos: a
existência do pecado original e dos seus efeitos (a tripla concupiscência
de que fala São João na sua primeira epístola) – e esta contra qualquer forma
de ingenuidade naturalista; a necessidade da graça, fruto da redenção,
único remédio – mas remédio omnipotente – para triunfar sobre estes efeitos
devastadores; a transcendência do fim último, que não está nesta terra,
mas no Céu.
Recordar isto significaria recomeçar a «confirmar os irmãos»[3].
Seria, novamente, pregada a verdadeira fé: esta última é a condição necessária a
cada vida sobrenatural; mas é também o guardião indispensável da lei natural,
que é, igualmente, divina na sua origem, eterna e imutável, base necessária
para conduzir o Homem à sua perfeição.
Estes três conceitos resumem-se num único ideal: o de Cristo Rei. É Ele
o objecto da nossa fé. É Ele o autor da graça. É Ele o autor desta lei natural
que inscreveu no coração do Homem quando o criou. O divino Legislador não muda.
Não renuncia à sua autoridade. Como não se pode alterar esta lei sem alterar a
própria fé, também não se poderá restaurá-la sem prestar ao seu divino Legislador
a honra que lhe é devida.
Mais claramente: não capitular perante este mundo, mas «submeter tudo a
Cristo»[4]. Em
Cristo Rei e através de Cristo Rei, a Igreja tem todos os meios para vencer o mundo,
cujo príncipe é o pai da mentira[5].
Já o fez, de uma vez por todas, na cruz: «Eu já venci o mundo!»[6].
A Santíssima Virgem terá um papel particular nesta vitória?
Se esta vitória é a de Cristo Rei, será, necessariamente, também a de sua Mãe.
Nossa Senhora é sistematicamente associada a todas as batalhas e vitórias do
seu Filho. Será associada também a esta com um título muito particular: nunca como
hoje se constatou o triunfo de erros tão perniciosos e tão subtis, causas de
desastres tão vastos e tão profundos na vida concreta dos cristãos. Ora, entre
os mais belos títulos que a Igreja atribui a Nossa Senhora, estão o de “Exterminadora
de todas as heresias” – Ela esmaga a cabeça de quem as concebe – e o de “Auxílio
dos Cristãos”. Por isso, quanto mais a vitória do erro parece definitiva e irreversível,
mais gloriosa será a vitória da Santíssima Virgem.
[1] N. 127.
[2] Hereges.
[3] Cf. Lc 22, 32.
[4] Ef 1, 10.
[5] Jo 14, 30 e 8, 44.
[6] Jo 16, 33.
2 Comentários
Quando o Vigário de Cristo foi eleito ao Trono de S. Pedro e, portanto, legitimado para escolher só a sucessão episcopal, tal foi o anátema do anti-Papa dos lefebvristas, D. Fellay:
ResponderEliminar"Estamos diante de um modernista".
Excomungado automaticamente por incorrer na "pior de todas as heresias", o Sumo Pontífice não pode alegar nem defeito de forma, nem "caso de necessidade".
Ora, ante salutar alívio, por que se interessar pelo juízo de um padre da fsspx sobre o atual Papado? Por que sofrer e chorar com a Santa Igreja acompanhando-a até o Calvário?
A solução à crise na Igreja está dada: celebrante no quintal e fé de sempre. Já a caridade que nos vincula à hierarquia fundada por Cristo Rei será dada por suplência. "Sauver la messe", já dizia o gênio inventor desta solução tão simples.
Por que a Fraternidade São Pio X deixou e deixará, segundo já foi informado, seus fiéis sem missa, durante as suspensões de missa com público decretadas em toda parte pelo poder civil? Quando inúmeros padres diocesanos e de institutos, supostamente à mercê de autoridades modernistas, corajosamente atenderam os que os procuraram para a celebração da Santa Missa, para confissões e para extrema-unções? É isso "não capitular perante este mundo"? Que tristeza! Os senhores perderam uma excelente ocasião de transformar suas belas palavras em atos!
ResponderEliminar«Tudo me é permitido, mas nem tudo é conveniente» (cf. 1Cor 6, 12).
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