A dois dias da chegada do Papa
Francisco ao Iraque – País nunca visitado por um Pontífice –, o
portal católico Dies Iræ publica, em exclusivo, a entrevista
que realizou ao Prof. Alexandre del Valle. O entrevistado, ítalo-francês, é
professor de Geopolítica, consultor e editorialista. É especialista no mundo
arabe-islâmico e em questões geoestratégicas. Para além disso, escreveu vários
ensaios sobre o islamismo radical, a Turquia, o terrorismo jihadista, as
guerras balcânicas, as relações entre o Ocidente e a Rússia, entre outros. É
consultor do Parlamento Europeu, co-fundador do Instituto Daedalos, de
Geopolítica do Mediterrâneo de Chipre, e fundador do Multipolar World
Institute, de Bruxelas. Escreve, de forma regular, em vários jornais e revistas.
Em Portugal, tem dois títulos editados: A Islamização da Europa (Livraria
Civilização Editora, Porto, 2010 – esgotado) e O Complexo Ocidental (Editora
Casa das Letras – Grupo Leya, Alfragide, 2020), sendo o segundo considerado o
seu livro mais influente.
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1. Muito obrigado, antes de mais, por
nos conceder, em exclusivo, esta entrevista. O senhor Professor poderia
explanar, de forma breve, aos nossos leitores, quando e como surgiu, no seu
horizonte mental, o estudo e o interesse pela geopolítica do Médio Oriente, e
do seu corolário religioso – o Islamismo – nas suas diversas vertentes?
Obrigado a vós. A
questão é muito importante para mim e para os leitores, porque, em Sociologia Política
e também na minha disciplina, a Geopolítica, sabe-se que a objectividade total não
existe entre os Homens e que é preciso dizer (sendo-se intelectualmente
honesto) ou saber “de onde se fala”. Assim, o meu interesse pelo Médio Oriente
e o Islão radical cresceu, aos poucos, desde os 18 anos, quando encontrei, em
França, amigos libaneses cristãos maronitas que me explicaram o conflito
libanês e o sofrimento dos cristãos que, depois de terem acolhido, de forma
generosa, no seu País (então ainda amplamente controlado pelos cristãos) 500.000
palestinianos muçulmanos sunitas, foram “agradecidos”, por estes últimos, com
os massacres, as razias e a transformação de Beirute numa base terrorista...
Depois, fui duas vezes ao Líbano, durante os meus estudos de Ciências Políticas,
durante meses, e tive a sorte de encontrar grandes docentes da Universidade
Católica-Maronita de Kaslik, que me deram muitas informações e “pistas” de
reflexão sobre o Islão e a perseguição das minorias não-islâmicas no Islão
sunita e, portanto, nos países cristãos. A partir daí, comecei a aprofundar o
tema do Islão e do Islão radical, e, posteriormente, do terrorismo islâmico,
que encontrou no Líbano um terreno de incubação e de expansão na década de
1980.
2. Para o homem ocidental, que não está familiarizado com o mundo islâmico,
como é que descreveria a situação dos países que vivem sob a lei da Sharia
islâmica?
Um dos meus primeiros estudos de pesquisa pré-doutoramento foi dedicado,
precisamente, a este tema: a lei islâmica contém 99% das atrocidades, barbáries,
violências e intolerâncias muitas vezes atribuídas apenas aos “extremistas
islâmicos”. Dou alguns exemplos: a Sharia prevê o massacre de todos os infiéis
que não se submetam às leis superiores do Islão, a morte de pagãos, apóstatas,
blasfemadores e, até mesmo, de cristãos e de hebreus que não sejam submissos; a
Sharia prevê, claramente, 3 grandes inferioridades: escravo vs. mestre, mulher
vs. homem e não-muçulmano vs. muçulmano; e, depois, a Sharia prevê, evidentemente,
a necessidade absoluta de conquistar todo o Mundo com o Jihad da guerra e,
ainda, o da palavra e da astúcia/duplicidade (taqiya), e o Islão sunita
oficial, nunca reformado, que ensina esta Sharia, justifica plenamente também a
crucificação dos apóstatas, como acontece, legalmente, na Arábia Saudita, o
massacre dos homossexuais e dos descrentes que não aceitam a supremacia
islâmica, ou a proibição dos instrumentos musicais, as punições corporais, o apedrejamento,
a infibulação e a excisão das mulheres, sem esquecer a necessidade de instaurar
um califado mundial hegemónico destinado a subjugar o Mundo inteiro. A
conclusão desta observação é que aqueles que afirmam que o islamismo não tem
nada a ver com o Islão estão a mentir ou são ignorantes..., e que será sempre
impossível acabar com a ameaça do islamismo radical até que o Islão sunita
oficial não tenha realizado a sua reforma integral teológica, jurídica e
política. Recordo que os dois centros mais importantes do Islão sunita mundial,
a Arábia Saudita, coração do salafismo e País das duas cidades “sagradas” (haram),
Meca e Medina, e, depois, a Universidade egípcia do Cairo Al-Azhar, nunca aceitaram
eliminar, reformar ou contextualizar as disposições totalitárias, violentas e
intolerantes do Islão nas suas dimensões políticas, jurídicas e sociais. Não o
dizem os chamados “islamofóbicos”, mas todos os intelectuais muçulmanos
moderados, seculares, sinceramente pacíficos.
3. Entre os dias 5 e 8 de Março, o Papa Francisco visitará o Iraque. Os
cristãos, antes uma comunidade numerosa neste País, sofreram uma dura
perseguição por parte da maioria islâmica, estando, hoje, reduzidos e
humilhados. Que panorama encontrará o Pontífice, sob este ponto de vista, no
Iraque? O diálogo ecuménico católico-islâmico trará algum resultado concreto?
A poucos dias da chegada do Papa Francisco ao Iraque, as expectativas da Igreja
local são altas. Esperamos que a sua visita ao País aumente a consciência dos
cristãos no Iraque. O Papa encontrar-se-á com os responsáveis cristãos e
muçulmanos, incluindo o líder dos xiitas iraquianos, o grande Aiatolá Ali al-Sistani,
visto como um homem de paz para os cristãos do Oriente. Mas temo que os outros
encontros inter-religiosos, de que tanto gosta o Papa Francisco, sejam não
apenas inúteis, mas também contraproducentes, se o Papa não adoptar um discurso
de franca exigência e de pedido de reciprocidade que nunca existiu entre
cristãos e muçulmanos, sejam xiitas ou sunitas. Para que servirá o encontro
inter-religioso previsto, simbolicamente, em Ur, no Sul do Iraque, cidade de
origem dos hebreus e, deste modo, dos primeiros monoteístas, “pátria de Abraão
e das três religiões”, se se limitará a repetir as usuais ideias politicamente
e islamicamente correctas, segundo as quais “hebreus, cristãos e muçulmanos têm
um pai comum em Abraão”. Temo que o Papa Francisco, o Papa mais pró-Islão de
todos os tempos na história da Igreja, não ouse e nem pense em denunciar – com
respeito, mas também com franqueza – a ausência de reciprocidade
islâmico-cristã e o facto que os países e autoridades islâmicas mundiais
exigem, no Ocidente, mais mesquitas e o direito de converter os cristãos ao Islão,
enquanto os cristãos são perseguidos em quase todos os países muçulmanos e não
podem construir, como desejam, novas igrejas. Na minha opinião, o Papa adoptará
uma atitude mais político-diplomática do que de verdade teológica, porque não é
o Papa da coerência doutrinal, como o foi Bento XVI, que ousou dizer a verdade
sobre o Islão, mas um Papa argentino que ignora o que é o mundo islâmico e que
erra ao acreditar que os cristãos serão mais bem tratados ou “poupados” em
troca dos seus discursos “inter-religiosos” e declarações falsas de que “o
verdadeiro Islão é tolerante”. Espero que seja inspirado pela graça dos
mártires cristãos do Iraque e que tenha um discurso de verdade, mas duvido realmente...
A verdade é que se trata de uma área onde os cristãos eram, há 50 anos, mais de
1,5 milhão e, agora, são menos de 250 mil... e continuam todos a tentar fugir e
emigrar para o Ocidente... Então, se o Papa acredita que a sua presença “inter-religiosa”
no Iraque estancará a hemorragia dos cristãos e tornará os fundamentalistas
islâmicos mais “abertos” ou “amigáveis”, está a sonhar, porque, ao contrário, da
parte dos integralistas, os “diálogos inter-religiosos”, tão almejados pelos Papas
católicos (excepto Ratzinger) do Concílio Vaticano II, nunca condicionados por
pedidos de reciprocidade, são, essencialmente, percebidos como sinais de
fraqueza e, por isso, um incitamento a perseguir, ainda mais, os cristãos, objectivamente
não defendidos pelos países ocidentais em processo de apostasia... Além disso,
sabendo perfeitamente que o Papa não vem para converter ninguém ao cristianismo
nem para anunciar a Palavra, muitos líderes religiosos islâmicos iraquianos estão
a mostrar, nas redes sociais, a sua hostilidade à viagem do Papa e estão a
aproveitar-se da sua vinda para fazer crer que o cristianismo ocidental estaria
a tentar relançar as Cruzadas ou gostaria de “provocar” os países muçulmanos
com o proselitismo cristão... Daí a temática obsessiva dos “cruzados”. Apesar
de ser hiper-pró-imigração e pró-islâmico, o Papa é apresentado, pelos
muçulmanos radicais e até ortodoxos, sobretudo sunitas, como «o rei dos
cruzados que entra no País como missionário».
4. No seu último livro publicado em Portugal, O Complexo Ocidental, o
senhor Professor alerta para o «vírus da culpabilização colectiva», que
tem por base vários mitos fundadores, tais como as Cruzadas, as «trevas»
da Idade Média, a diabolização da Igreja Católica, a dívida para com
al-Andalus, as acusações de esclavagismo, colonialismo e racismo de sentido
único, a «mundialização feliz» e as consequências das políticas da União
Europeia. Num breve apanhado, poderia explicar melhor estes fenómenos aos
leitores portugueses?
Nesta parte importante do meu livro, explico que uma verdadeira «guerra das
representações» levou ao enfraquecimento mental e identitário do Homem
europeu, atingido por uma síndrome de culpabilização crónica de cunho étnico-masoquista.
Explico que, para vencer essa doença colectiva que é a culpabilização
generalizada, devem ser colocados em confronto os principais mitos
politicamente correctos com a razão e com a realidade histórica. Tais mitos principais
são os seguintes: o Ocidente é “racista”, “esclavagista”, “islamofóbico”; “destruiu
o planeta”, é “imperialista”, “humilhou” os árabes, os muçulmanos e todo o Terceiro
Mundo com as cruzadas e com a colonização. A sua Igreja por excelência, a Católica
Romana, “oprimiu” os povos autóctones “convertendo-os à força”, desde a África
às Américas e à Ásia. Praticou “tortura” e matou em massa, em nome de Cristo,
por meio da Inquisição. Os reis “catolicíssimos” reinaram, durante mil anos de “Idade
Média bárbara”, por meio da espada e do fanatismo, até à “libertação”
representada pelo Renascimento, pelo Humanismo e pelo Iluminismo, que resultou
na formidável Revolução Francesa e religião humanista dos direitos humanos. “Ignorantes”
e “obscurantistas”, os europeus saíram da Idade Média “graças aos sábios
muçulmanos iluminados” que “lhes trouxeram a ciência” antiga e a filosofia
grega, que eles próprios “traduziram” e “transmitiram” à humanidade, mas de que
o Ocidente se apoderou... A “dívida do Ocidente” para com esses impérios
iluminados, “humilhados” pela “agressão cruzada”, seria tão imprescritível
quanto a sua culpa. Finalmente, o auge do horror alcançado com a Shoah seria o
resultado de “mil anos de anti-semitismo cristão” e implicaria uma
responsabilidade colectiva que não se limita aos alemães nazis ou aos seus
governantes da época, mas que seria uma herança do Homem branco. Esta culpa,
indefinidamente indescritível, transmitida pelo sangue corrupto dos europeus,
faria deles, da sua religião (cristã) e da sua etnia “o pior dos povos”. Eu
mostro que, na verdade, as cruzadas são, muitas vezes, apresentadas, pelos
propagandistas ocidentais, como o “pecado original” fundador da cristandade
ocidental. Esta culpa fundamental representaria as raízes remotas do
colonialismo europeu e do imperialismo ocidental, e também seria a causa da
violência islâmica e do anti-ocidentalismo radical dos países muçulmanos, “traumatizados
pelas cruzadas”, cuja violência anticristã não seria mais que uma simples “reacção”
diante de uma imperdoável violência que teriam sofrido primeiro... O próprio
sionismo não seria nada mais que o fruto do “imperialismo ocidental” ao serviço
dos novos “cruzados hebreus”, que foram “manchar os lugares sagrados do Islão”.
Em suma, o colonialismo árabe-muçulmano e, até mesmo, o terrorismo islâmico
nada mais seriam do que um “justo castigo”... Esta representação constitui uma extraordinária
fraude intelectual que deve figurar nos anuários da desinformação.
Enquanto o Ocidente culpa os autores das cruzadas, que não foram nada mais do
que reacções legítimas às “cruzadas islâmicas”, os países e as organizações
muçulmanas afirmam descaradamente a sua vontade de submeter a capital da
cristandade a Alá. Em troca, os “malvados” cruzados europeus respeitarão sempre
os dois lugares sagrados do Islão, Meca e Medina, sem jamais conquistá-los ou
saqueá-los. No entanto, hoje, são os Ocidentais, os cristãos, a pedir “perdão”
aos países muçulmanos, que, por sua vez, não se arrependem de ter invadido
Bizâncio e Roma... Apoiantes desta acusação reflexa, os países muçulmanos
exigem continuamente que os europeus peçam desculpa pelas cruzadas e pela colonização,
mas nunca se preocupam, em momento algum, em desculpar-se pelas suas guerras
colonizadoras e pelas piratarias barbáricas, pela escravidão dos negros e dos europeus
– a colonização islâmica (África, Andaluzia, Sicília, Balcãs, Índias) ou os genocídios
anticristãos (um milhão e meio de arménios assírio-caldeus da Turquia e 2
milhões de cristãos animistas do Sudão do Sul). É verdade que o passado deve ser
ultrapassado e, além disso, o diálogo islâmico-cristão parece surgir de uma
intenção louvável, mas a reciprocidade deve ser uma obrigação e os países
muçulmanos, que exigem que o Ocidente condene os caricaturistas de Maomé,
fariam bem em combater o anticristianismo islâmico, que, por sua vez, é um
assassino e, consequentemente, muito mais grave do que simples ridicularizações.
O diálogo islâmico-cristão, incondicionalmente inaugurado pelo Concílio
Vaticano II, na década de 1960, permanecerá um diálogo entre surdos enquanto os
países islâmicos virem sinais de fraqueza na mão estendida e na aceitação da
tolerância unilateral dos cristãos. E essa fraqueza incita os perseguidores dos
cristãos a aumentar a dose de violência. Na verdade, as profissões de fé
islamicamente correctas do Vaticano e o diálogo islâmico-cristão nunca
impediram a perseguição de cristãos no Paquistão, na Arábia Saudita, o massacre
de cristãos no Sudão ou no Iraque, ou o assassinato de sacerdotes católicos na
Turquia (P. Andrea Santoro em 2006, Monsenhor Luigi Padovese em 2010)...
Em seguida, explico que a Idade Média não foi, como muitas vezes se crê, uma
época de barbárie e de “guerra de todos contra todos”. Em proporção, causou
menos mortes em mil anos do que a Revolução Francesa, as guerras napoleónicas e
as dos três séculos seguintes (totalitarismo, guerras de massa e genocídios). Na
Idade Média, as guerras, limitadas no número e no espaço, eram, em vez disso,
obra dos senhores detentores do poder temporal e dos reis de França, ou seja, uma
questão de profissionais. Depois, esquece-se, muitas vezes, que, naquela época,
o saber e a ciência não eram desprezados nem ignorados pelos políticos e
religiosos, muito pelo contrário. Além das formidáveis obras tecnológicas e
arquitectónicas que foram as catedrais – de Santa Sofia de Constantinopla a
Notre-Dame de Paris, passando pela Catedral de Chartres ou pela Catedral de
Milão –, Régine Pernoud recorda também «que, na Idade Média, os autores latinos
e gregos eram bem conhecidos, que o contributo do mundo antigo – clássico ou
não – estava longe de ser rejeitado» e que «o seu saber era considerado
um elemento essencial do conhecimento». Assim, «no século XII, a
biblioteca de Monte Saint-Michel incluía textos de Catão, o “Timeu”, de Platão
(em tradução latina), várias obras de Aristóteles e de Cícero, trechos de
Virgílio e de Horácio»... Na época, de facto, a Igreja assegurava o ensino
e dispensava o saber a todos. Aos mosteiros, homens e mulheres de todas as
classes sociais iam-se instruir: esses centros culturais hospedavam os maiores
estudiosos da época. O primeiro europeu a referir-se explicitamente aos “direitos
humanos” foi também um monge, o famoso Alcuíno, que se tornou Ministro da Instrução
Pública de Carlos Magno. Por outro lado, a Igreja defendeu sempre a dignidade
humana e a educação. Combateu tanto a escravidão como o repúdio, a poligamia e
a pobreza, muitas vezes muito melhor do que o poder temporal. No que diz
respeito a França, basta constatar a grande quantidade de instituições
denominadas “hôtel-Dieu” (Paris, Marselha, Lião, etc.) ou “maison-Dieu”, que
eram hospitais e asilos para os pobres. No sector da saúde pública, a Igreja cuidava
tanto os corpos quanto as almas e dispensou a caridade em todos os lugares,
criando as primeiras obras de caridade, das quais as associações católicas de
ajuda humanitária e a Cruz Vermelha são as distantes descendentes.
A seguir, recordo que a Igreja nunca afirmou que a mulher seja “inferior” ao
homem ou que não tenha alma e que é totalmente falso dizer que a Igreja
Católica esperou pelo fim do século XIX para condenar a escravidão, e que tenha
decretado que os ameríndios subjugados pelos conquistadores espanhóis e
portugueses “não tinham alma”. Desde cedo, na Europa, os reis e os bispos,
incluindo Guilherme, o Conquistador (1027-1087), São Vulstano de Worcester
(1009-1095) e Santo Anselmo (1033-1109), proibiram a escravidão. No século
XIII, São Tomás de Aquino decretou que a escravidão é um “puro pecado”. Tomás
de Aquino via nisso uma infracção da “lei natural”, uma vez que todas as
criaturas humanas têm “direito à justiça” e à dignidade. Foi com base nisso que
a Igreja definiu a escravidão como um “pecado contra a dignidade humana”. Em
1437, o Papa Eugénio IV publicou a bula Sicut Dudum, que ameaçava de
excomunhão os esclavagistas. Os Papas Pio II (1458-1464) e Sisto IV (1471-1484)
também promulgaram bulas que condenavam, sem quaisquer equívocos, a escravidão.
Em 1537, o Papa Paulo III emitiu uma declaração oficial contra ela: quer dizer,
quase seiscentos anos antes que a Arábia Saudita ou o Sudão a tenham proibido
teoricamente... Lembro que, mesmo antes dos negros africanos, as primeiras
vítimas do esclavagismo árabe-islâmico foram europeus eslavos e mediterrânicos,
vendidos, durante séculos, nos países árabes-muçulmanos. No entanto, a
realidade da escravidão dos brancos é atestada pela mesma raiz da palavra “escravo”,
usada em todas as línguas europeias (schiavo, esclavo, esclave,
slave, sklave), que vem do etnónimo “eslavo” que carregam, ainda
hoje, por exemplo, os Eslovacos e os Eslovenos. Schiavonia (a actual região da
Eslavónia, que inclui a parte oriental da Croácia e da Eslovénia), antiga
reserva de escravos brancos, significava “o país dos escravos”. Os europeus,
embora sejam tão implacáveis com o seu passado, ocultam sistematicamente o facto
de que o esclavagismo muçulmano afectou, durante mais de um milénio, eslavos, balcânicos,
gregos, italianos e, até mesmo, ingleses e germânicos capturados durante o
tempo dos ataques e da pirataria. Alexandre Skirda, historiador e ensaísta,
explica que, antes mesmo de existir o comércio atlântico, cerca de 4,5 milhões
de europeus orientais foram submetidos ao tráfico muçulmano. Esse “comércio de
brancos”, perpetrado por muçulmanos, foi tão assassino quanto o dos negros.
Skirda distingue dois tráficos dos eslavos: o definido “ocidental”, realizado
na Europa Central, e o “oriental”, que enlouqueceu da Polónia à Rússia.
Martiriza-se o Ocidente cristão pelo esclavagismo do passado, especialmente
pelo “comércio atlântico” ou “triangular”, mas, curiosamente, a escravidão
árabe-muçulmana é escondida na maioria das vezes, apesar de ter feito mais
vítimas e ter durado por um período mais extenso em relação ao comércio
atlântico: mil e duzentos anos no caso do esclavagismo árabe-muçulmano, três
séculos no caso deste último... E não se pode negar que, até hoje, em
território islâmico, nenhuma voz se levantou para denunciar o esclavagismo
árabe-muçulmano da mesma forma vigorosa com que o Ocidente denuncia o seu. Só o
“tráfico árabe-islâmico”, que não inclui o esclavagismo do Império Otomano e dos
seus piratas bárbaros, instalados no Norte da África, fez 11 milhões de vítimas
apenas no período que vai século IX ao século XVII, isto é, o mesmo número
daqueles feitos pelo comércio atlântico, com a diferença de que os escravos dos
muçulmanos árabes eram castrados e mortos em massa, enquanto os descendentes
dos escravos dos europeus tiveram uma progénie importante e foram,
posteriormente, libertados. Finalmente, só para o esclavagismo otomano-bárbaro,
o especialista Robert Davis calcula – levando em conta o número considerável de
mortes (20% ao ano) entre 1530 e 1780 – que o número de europeus escravizados
apenas no Norte da África otomana chegue a 1.200.000 pessoas...
Não posso desenvolver todos os 10 mitos da desinformação anti-ocidental e do “cosmopoliticamente
correcto”, que explico no livro, mas termino, aqui, com o da chamada Andaluzia
árabe-islâmica “tolerante”: esse mito, inventado pela esquerda anticatólica do
Terceiro Mundo, serve para justificar, filosófica e moralmente, a submersão
migratória islâmica, mas é falso. Na realidade, a Espanha muçulmana
(Al-Andalus) foi conquistada pelas armas e dominada como um império colonial, e
não foi uma terra de convívio onde diferentes comunidades teriam coexistido com
os mesmos direitos e teriam acedido ao poder político de forma justa.
Al-Andalus era uma sociedade político-religiosa composta por dominadores
árabes-berberes (e espanhóis convertidos) e dominados hebreus e cristãos de
origem celtibérica e visigótica. Os cristãos e os hebreus eram submetidos à lei
islâmica e, logo, discriminados como dhimmi (ahl al-dimmah), ou
seja, mais ou menos livres de praticar o seu culto em privado, mas forçados a
reconhecer a autoridade dos dominadores muçulmanos, a pagar a taxa dos infiéis
(jyzya) e sem a oportunidade de desfrutar de direitos iguais em relação
aos muçulmanos. Os dhimmi também podiam ser punidos muito duramente ou
condenados à morte em caso de acusação de proselitismo cristão ou de blasfémia
contra o Islão. Além do famoso massacre de hebreus de Granada, em 1066, há numerosos
casos de repressões, muitas vezes brutais, de “desviados”, de cristãos ou de outros
descrentes ou apóstatas. De facto, entre os reinos cristão e os muçulmanos,
entre os principados as taifa muçulmanas, e mesmo entre as várias taifa,
existia um estado de guerra permanente. As festas tradicionais das regiões de Múrcia
e do Levante (Alicante, Valência), como a famosa Fiesta de los Moros y de
los Cristianos, são testemunho do ódio recíproco e da violência que
caracterizava as relações entre cidades muçulmanas e cidades cristãs não
ocupadas ou “libertas”. Em 1010, centenas de hebreus foram assassinados perto
de Córdoba. Os massacres prolongaram-se por três anos. Em 1066, milhares de hebreus
foram massacrados, pelas autoridades muçulmanas da época, na própria Granada.
Em 851, o califa omíada Abderramão II, de Córdoba, promulgou um édito que
ameaçava de morte todos os “blasfemadores” contra o Islão e mandou prender os
líderes cristãos da cidade. Em 852, a administração de Córdoba foi expurgada dos
seus elementos cristãos e as igrejas construídas após a conquista árabe foram
destruídas. Em 900, uma fatwa proibiu os cristãos de Córdoba de
construir novas igrejas. Em 1102, para escapar às perseguições, a população
cristã de Valência fugiu em massa para o recém-reconquistado Norte de Espanha.
Em 1125, os cristãos de Granada aproveitaram a retirada das tropas de Afonso de
Aragão, depois de uma incursão na Andaluzia, para procurar refúgio no Norte
cristão. Em 1146, os cristãos de Sevilha fugiram, diante da invasão almóada de
Espanha, que também levou à expulsão dos hebreus ou à sua conversão forçada. Em
1184, os almóadas ordenaram que os cristãos e os hebreus de Al-Andalus usassem
sinais distintivos. E, em 1270, a segregação é generalizada a todos os hebreus da
Espanha muçulmana.
Por fim, um dos mitos fundadores da nova doxa cosmopoliticamente correcta
é, sem dúvida, a do “estrangeiro bom”. Este mito muito antigo encontra as suas
raízes, antes de tudo, na Bíblia (a história de Sodoma e Gomorra, na qual o
hóspede rico e mau é castigado pela destruição das duas cidades) e na mitologia
grega, com a tocante história de Filémon e Baucis, um pobre casal de idosos
recompensado por ter bem acolhido dois viajantes que se revelaram ser Zeus e
Hermes. Mas, na sua versão moderna, mais deformada ideologicamente, o mito do estrangeiro
bom deve muito aos velhos mitos rousseaunianos e enciclopedistas do “bom
selvagem”, dotado de todas as virtudes e “puro”, e ao do “bom oriental”, sábio,
culto e tolerante.
5. Há cerca de um mês, o Twitter suspendeu a conta do partido político
espanhol Vox, que lançou uma campanha contra a islamização naquele País. Pode
considerar-se mais este um lobby em que estão empenhadas as elites
progressistas dos nossos tempos?
Não é surpreendente. Os lobbys mundialistas ou “cosmopoliticamente correctos”
não suportam ver crescer ou chegar ao poder as forças identitárias, que
procuram fazer sempre passar por perigosos “fascistas”. Por isso, devem silenciá-las.
A 8 de Janeiro, as contas de Donald Trump no Twitter (88 milhões de seguidores),
Facebook (35 milhões) e Instagram foram fechadas por “risco de ulterior incitação
à violência”. Snapchat, TikTok, Twitch, Microsoft, YouTube e Reddit seguiram o
exemplo. Foi a primeira vez que um chefe de Estado em exercício viu a sua
liberdade de expressão suprimida desta forma. Poderíamos entender essa medida
única se Trump tivesse iniciado uma guerra ilegítima, como o pai e o filho Bush,
depois de terem espalhado notícias falsas muito mais graves do que as de Trump,
na verdade o presidente dos Estados Unidos mais pacifista desde a época de
Carter. Poderemos compreender que os GAFAM excluam as contas de Recep Tayyip
Erdoğan (17,3 milhões de seguidores no Twitter, dez milhões no Facebook), que
insultou Emmanuel Macron, ameaçou países da UE (Áustria, França, Grécia,
Chipre), negou o genocídio arménio, tinha os curdos massacrados na Síria, tentou
apoderar-se das águas soberanas e do gás da Grécia e de Chipre do Norte, apoiou
os jihadistas da Síria e da Líbia, enviados para massacrar os arménios, em
Nagorno-Karabakh, em apoio ao Azerbaijão), apoiou o Daesh, reprimiu a oposição
turca e a minoria curda, em seguida, fez-se votar com plenos poderes após
colocar o açaimo na imprensa... Apesar de tudo, nunca foi suspenso das redes
sociais. Os GAFAM também não acharam oportuno cancelar as contas do ex-Primeiro-Ministro
malaio, Mahathir bin Mohamad, conhecido pelas suas posições anti-semitas, que
tem 4 milhões de seguidores no Facebook e 1,3 milhão no Twitter. A 29 de Outubro,
no Twitter e no seu blogue, depois da decapitação de Samuel Paty, escreveu que «os
muçulmanos têm o direito de ficar com raiva e de matar milhões de franceses»...
Os reguladores do Twitter recusaram-se, inicialmente, a bloquear a mensagem de
Mahatir, citando “interesse público”. Receberá um simples “aviso” e a sua conta
permanecerá activa. Trata-se de um “double standard”. Mas o sistema globalista
não pode reagir de outra forma...
6. Como é que vê o rápido e constante crescimento do Islão em França, a
“filha mais velha” da Igreja Católica?
É uma catástrofe e um gravíssimo perigo para a Nação, não porque todos os
muçulmanos sejam maus ou fanáticos, mas porque a maioria dos migrantes muçulmanos,
em vez de serem integrados e assimilados, são treinados e fanatizados pelos
radicais. O erro do Ocidente e, acima de tudo, da Europa foi duplo: primeiro,
organizar uma imigração em massa árabe-afro-turca-islâmica descontrolada, que
se tornou uma neocolonização da população com reunificação familiar, sem
limitá-la a uma quantidade razoável, e, em segundo lugar, oferecer a
responsabilidade de gerir os locais de culto e de controlar esses cada vez mais
numerosos migrantes muçulmanos não aos imãs moderados, mas aos islamistas mais
radicais ligados à Irmandade Muçulmana, às redes turcas, ao Paquistão, aos
salafistas sauditas ou do Catar e aos países do Magrebe, que têm todos como
objectivo impedir a integração dos muçulmanos nas nossas sociedades abertas “infiéis”.
Este erro começa a ser pago caro... E é apenas o princípio da catástrofe,
porque, em 20 anos, a demografia dos Europeus será tão fraca e a das massas
revanchistas islâmicas tão crescente que a situação de fragmentação e
destruição da homogeneidade dos países da Europa Ocidental com milhões de
muçulmanos tornar-se-á cada vez mais explosiva, com um risco cada vez maior de
guerras civis, especialmente nos países como França, Alemanha, Inglaterra, Bélgica,
Suécia e Holanda. Recentemente, chamei a esse perigo crescente de “a síndrome Mad
Max”, caos geral que será favorecido tanto pela esquerda marxista subversiva, que
procura a revolução, quanto por bandos étnicos africanos, como os Black Lives
Matter. Blacks muslims/BLM; islâmicos radicais árabes e turcos neo-otomanos, e
forças de extrema-esquerda já se estão a unir para preparar o caos e a
destruição interna da sociedade ocidental. Essas sociedades pagarão o preço da
sua abertura irresponsável e indiscriminada aos inimigos declarados, como o
temia o próprio ideólogo das sociedades abertas, Karl Popper.
7. A terminar, enquanto católicos, qual será a melhor forma para resistir à
visível e preocupante islamização da Europa?
O maior problema dos católicos é a tentação do “bonismo” e da errada
compreensão da noção de “culpa”, que, demasiadas vezes, por falta de boa
formação, confundem com a equívoca necessidade de culpabilizar. Esta errada
compreensão do universalismo e da tolerância cristã é um verdadeiro vírus que a
esquerda infiltrada na Igreja soube perfeitamente instrumentalizar e fazer crescer
até tornar globalistas tantos cristãos. Depois, os cristãos devem sempre recordar
que, se devem respeitar a função do Santo Padre como instituição, não devem, necessariamente,
aderir a todos os discursos e a todas as observações do Papa quando fala de
coisas de que não é especialista nem competente, como a política, a imigração, o
Islão, a defesa dos clandestinos, a condenação dos “populistas”, etc. O Papa
deve ser seguido e obedecido, de um modo absoluto, em termos de fé e de valores,
e deveres ou proibições, apenas se fala ex cathedra, e apenas se ele, servidor
da Igreja, não viola ou não importuna a Tradição católica. Podemos a estar
certos de que, quando ele diz que o acolhimento aos migrantes supera também o
interesse nacional ou que o Islão é tolerante e não tem nada a ver com o jihadismo,
erra. E é seguro que a Tradição da Igreja nunca confundiu o temporal com o
espiritual, aliás, sempre respeitou a lei e as identidades nacionais, e as
fronteiras entre os países. O globalismo é uma doutrina temporal anticatólica,
contrária ao universalismo cristão, que é apenas espiritual. O globalismo encarna,
hoje, a Torre de Babel, do Antigo Testamento, amaldiçoada e condenada por Deus.
O verdadeiro católico, que conhece o direito pontifício e a Tradição dos Padres
da Igreja, nunca pode ser globalista.
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«Tudo me é permitido, mas nem tudo é conveniente» (cf. 1Cor 6, 12).
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