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Vídeo da conferência pronunciada por Roberto de Mattei |
A memória dos aniversários ajuda-nos a
atribuir ao tempo uma dimensão não apenas quantitativa, mas qualitativa, a sair,
de alguma forma, do tempo para entrar numa dimensão simbólica e meta-histórica,
que é um reflexo, no tempo, da eternidade.
O tempo é feito de momentos que fluem e cada momento tem um significado que
vale para a eternidade.
Isto vale tanto para a vida dos homens como para a história da Igreja e da
sociedade.
Por isso, desejo dedicar esta conferência, na qual recordo os 450 anos que nos
separam da batalha de Lepanto, ao Príncipe Imperial Dom Bertrand de Orléans e
Bragança, cujos oitenta anos celebrámos este mês.
Oitenta anos que o príncipe dedicou à causa da Contra-Revolução católica com o
mesmo espírito que animava os combatentes de Lepanto que, a 7 de Outubro de
1571, enfrentaram e venceram a frota otomana no Mediterrâneo.
Voltemos, pois, àquele dia arquetípico, o dia da batalha de Lepanto.
A quem, na madrugada daquele 7 de Outubro, pudesse contemplar as águas que se
reflectem diante do estreito que liga o golfo de Patras ao golfo de Corinto,
antes dito de Lepanto, o espectáculo teria parecido impressionante.
Uma gigantesca frota, a mais numerosa já formada no Mediterrâneo, avançava
lentamente, com o vento de sudeste na popa. Cerca de 270 galés e uma quantidade
indescritível de barcos menores formavam um semicírculo, uma enorme e ameaçadora
semilua que ocupava todas as águas que, desde as costas montanhosas da Albânia,
a Norte, chegam aos baixios da Moreia, a Sul.
No centro da semilua que avançava, no navio-almirante, chamado Sultana, ondulava
um estandarte verde, vindo de Meca, que trazia o nome de Alá, bordado em ouro,
28.900 vezes.
Deste Deus, em Setembro do ano 622 da era cristã, um homem declarou-se profeta,
lançando um apelo para conquistar o mundo. A religião que fundou resumia o seu
programa no nome: Islão, submissão.
Agora, diante do Islão, que desdobrava toda a sua força no mar, vinha ao seu
encontro uma frota, inferior em número de navios, contra o vento, com a força
exclusiva dos remos, alinhada em formação em cruz. No casco vermelho e branco do
seu navio-almirante, o Reale, esvoaçava uma bandeira de damasco azul,
que trazia impressa a imagem do Crucifixo.
Do sangue precioso deste homem-Deus, crucificado no Calvário, desenvolveu-se a
Igreja e nasceu uma grande civilização, a mais alta que a história já conheceu:
a Civilização Cristã do Ocidente.
Esta civilização estava ameaçada. Esta civilização era atacada.
Depois de, em 1453, o sultão Mohammed II ter conquistado o Império cristão do
Oriente, os turcos tinham visto iminente o dia do seu domínio universal.
O último objectivo das suas conquistas era chamado de “Maçã Vermelha”
(Kizil-Elma). Com este nome era definido o globo de ouro encimado pela cruz que
encimava a estátua do Imperador em Constantinopla. Depois da conquista de
Constantinopla, Roma tornou-se a “Maçã Vermelha”, ou seja, o símbolo do triunfo
do Islão sobre a Cristandade.
Em 1521, os turcos apoderaram-se da cidade de Belgrado; em 1526, tinham
conquistado a Hungria e chegaram às portas de Viena, a capital do Império. Em
Itália, tinham invadido e saqueado todas as costas do Sul.
Trípoli já havia sido tomada aos espanhóis, a ilha de Quios aos genoveses,
Rodes aos cavaleiros de São João, que a possuíam, e a própria ilha de Malta, nova
sede dos cavaleiros, teria caído nas mãos dos turcos se Jean de La Valette,
Grão-Mestre da Ordem, não a tivesse defendido e salvo com heróico valor.
Em Fevereiro de 1570, chegou a Veneza um embaixador turco com um ultimato da “Sublime
Porta”: ou a cessão, ao sultão, da ilha de Chipre ou a guerra. Veneza recusara
com desdém.
Mas, depois de onze meses de cerco, a 1 de Agosto de 1571, na ilha de Chipre, a
cidade de Famagusta caiu. O pacto de rendição garantia a vida dos defensores
sobreviventes, mas, quando o comandante turco entrou em Famagusta, fez com que
o comandante da praça cristã, Marco António Bragadin, fosse esfolado vivo. O
corpo foi esquartejado, a pele de Bragadin foi preenchida de palha, vestida com
o seu uniforme e arrastada pela cidade. Bragadin, a quem foi oferecida a vida caso
se convertesse ao Islão, recusou a apostasia e suportou o martírio com coragem
heróica.
O terror reinava no Mediterrâneo, o antigo Mare nostrum. A sorte dos
cristãos de Chipre era aquela que o Islão parecia preparar aos cristãos de toda
a Europa.
Na cátedra de Pedro sentava-se um inquisidor dominicano, Michele Ghislieri, subido
ao pontificado, no início de 1566, com o nome de Pio V.
Avaliou a gravidade do perigo e percebeu que apenas uma guerra preventiva
salvaria o Ocidente. Com palavras graves e comoventes, exortou as potências
cristãs a unir-se contra os agressores e fez desta defesa da Cristandade o
património do seu breve pontificado.
Nem todos responderam ao apelo. A expansão dos turcos também se desenvolvia
graças à cumplicidade decisiva de países cristãos, como a França, que, em nome
dos seus interesses geopolíticos, encorajava e financiava os turcos para
enfraquecer o seu tradicional inimigo: a Casa da Áustria.
Todavia, graças às orações e à insistência do pontífice, a 25 de Julho de 1570,
Espanha, Veneza e o Papa concluíram uma Santa Liga contra os turcos.
Imediatamente depois, aderiram o Duque de Saboia, a República de Génova e a de
Lucca, o Grão-Duque da Toscana, os Duques de Mântua, Parma, Urbino, Ferrara, a
Ordem Soberana de Malta.
À frente da Liga Cristã foi posto um jovem de 25 anos: Dom João de Áustria,
filho natural de Carlos V e, portanto, meio-irmão do Rei de Espanha, Filipe II.
A frota pontifícia, constituída graças à ajuda decisiva dos Cavaleiros de Santo
Estêvão, era comandada por Marco António Colonna, Duque de Paliano, a quem o
Papa confiou a bandeira da Igreja.
A frota cristã concentrou-se em Messina, na Sicília, em Agosto de 1571. Posteriormente,
no final de Setembro, zarpou e, após vinte dias de navegação para Leste, chegou,
às onze da manhã daquele domingo, 7 de Outubro do ano 1571, de fronte ao inimigo.
Na vanguarda da armada Cristã avançavam seis galeaças, duas na frente de cada
esquadrão, dotadas de um novo tipo de canhão com poder de fogo superior a todos
os outros. Essas tinham a função de despedaçar, com a sua força de choque, o
ímpeto do primeiro ataque inimigo.
No centro da frota estava o chefe da Armada Cristã, Dom João de Áustria, com 61
galés. Ao seu lado navegavam Marco António Colonna, almirante do esquadrão pontifício,
e Sebastiano Venier, comandante do esquadrão veneziano.
Na ala esquerda estava o provedor veneziano, Agostino Barbarigo, ao comando de
51 galeras; na ala direita o almirante genovês, Giovanni Andrea Doria, com 53
galeras. A frota da retaguarda, sobre a qual ondulava a bandeira branca, em honra
da Imaculada, era composta por 37 galés, comandadas por Dom Álvaro de Bázan,
Marquês de Santa Cruz. Era previsto que essa entrasse em acção no momento mais
quente do embate.
Dom João de Áustria usava, na couraça, as insígnias do Tosão de Ouro e, ao
pescoço, levava a relíquia de um fragmento da Cruz, doada pelo Papa.
As coberturas das galés estavam apinhadas de homens ajoelhados para assistir à Missa
e receber a absolvição geral dos capelães. Pio V queria que os combatentes
fossem assistidos por jesuítas embarcados nos navios espanhóis, por dominicanos
e franciscanos nos navios genoveses, saboianos e venezianos, e por religiosos
capuchinhos nos navios pontifícios. O tema de todos os sermões daquela manhã
tinha sido: “nenhum céu para os covardes”. Em cada navio da Liga foi proclamada
a bula com que Pio V concedia a indulgência plenária a todos os que tombassem combatendo
os infiéis.
Depois, no navio-almirante, soaram as trombetas e, no mastro principal do Reale,
de Dom João, foi hasteado o grande estandarte da Santa Liga, que tinha impresso
a imagem do Crucifixo. Um poderoso grito, “Vitória”, explodiu e correu por todo
o alinhamento, repetindo-se, como um eco, de navio em navio.
De repente, o vento mudou. As velas dos turcos afrouxaram, enquanto, ao longo do
alinhamento de Dom João, as velas latinas desdobravam-se nos mastros, infladas
pelo vento. Na frota cristã, os armeiros rebentarem as correntes dos
condenados, dando-lhes armas para combater. Os prisioneiros empunharam espadas
e pequenas alabardas, determinados a ganhar a sua liberdade com as armas.
Na frota cristã, velhos e muito jovens combatiam lado a lado. No seu
navio-almirante veneziano, Sebastiano Venier combatia com a cabeça descoberta e
em pantufas porque – respondia a quem lhe perguntou o motivo – se seguram
melhor na coberta. Tinha 75 anos e embraçava a besta, ajudado por um marinheiro
para o carregamento da arma, uma operação que já era superior às suas forças.
Por outro lado, outro veneziano, Filippo Pasqualigo, tinha apenas doze anos
quando acolheu o último suspiro do seu irmão Antonio, morto pelos turcos.
Antonio Pasqualigo era comandante da galera “Il Crocifisso”. Havia trazido consigo
o seu irmão mais novo para que aprendesse como se servia Veneza.
Era assim que eram educados aqueles que, mais tarde, o povo reconhecia como
patrícios venezianos. Era assim que combatia aquela que, pelo seu valor nos
campos de batalha, era reconhecida como a aristocracia europeia.
A frota otomana era numericamente mais forte, mas a Santa Liga prevalecia pelo
número de armas. Além disso, a infantaria cristã era composta quase
inteiramente de arcabuzeiros, que, depois de atingirem o inimigo, deixavam o
arcabuz para empunhar a espada. Os turcos faziam largo uso de arcos curvos, mas
as couraças e os elmos usados pelos cristãos constituíam uma considerável
protecção contra as flechas.
A batalha durou cinco horas e decidiu-se no centro do alinhamento, onde os
navios-almirante bateram com os esporões uns nos outros, formando um campo de
batalha flutuante em que se sucederam ataques e contra-ataques até que o
regimento escolhido de arcabuzeiros da Sardenha conseguiu lançar o ataque
decisivo. Ali Paxá foi atingido de morte e, sobre o Sultana, foi
amainada a meia-lua e hasteada a bandeira cristã.
No final da batalha, a Liga havia perdido cerca de 7.000 homens; os turcos contaram
mais de 25.000 perdas e 3.000 prisioneiros.
Pela primeira depois de um século, o Mediterrâneo tornou-se livre. A partir
deste dia, iniciou o declínio do Império Otomano.
Na tarde desse mesmo dia, Pio V, que multiplicara as suas orações Àquela que
sempre auxiliara os cristãos nas horas dramáticas da cristandade, examinava os
relatos com alguns prelados.
De repente, foi visto a levantar-se, a aproximar-se da janela, fixando o olhar como
estático, e, depois, regressou em direcção aos prelados, exclamando: “Não nos
ocupemos mais de afazeres, mas vamos agradecer a Deus. A frota cristã obteve a
vitória”.
Duas semanas depois, na noite entre 21 e 22 de Outubro, chegou a Roma um
mensageiro enviado pelo Núncio em Veneza, Facchinetti, com a notícia da grande
vitória. O Papa, acordado a meio da noite, desatou a chorar de alegria,
pronunciando as palavras do velho Simeão: nunc dimittis servum tuum Domine
(…) quia viderunt oculi mei salutare tuum. Ao romper do dia seguinte, o
som dos sinos e o canto do Te Deum anunciaram a vitória ao povo romano.
O rei de Espanha, Filipe II, assistia às vésperas quando um fidalgo da Casa Real
se aproximou dele para lhe comunicar, em voz baixa, que acabara de chegar um
mensageiro que trazia a notícia da vitória. O rei de Espanha permaneceu
impassível, no seu genuflexório, e continuou a rezar até ao fim do ofício
divino. Depois, anunciou a notícia aos presentes, dispondo que, na manhã
seguinte, fosse celebrada uma Missa pelas almas dos que morreram na batalha.
São Pio V atribuiu o triunfo de Lepanto à intercessão da Virgem e quis que, nas
Ladainhas Lauretanas, se acrescentasse a invocação “Auxilium christianorum”.
Também o Senado Veneziano quis atribuir à Santíssima Virgem o mérito principal
da vitória e, no quadro mandado pintar no salão das suas reuniões, fez escrever
estas palavras: “Non virtus, non arma, non duces, sed Maria Rosarii, victores
nos fecit ”. “Não o valor, não as armas, não os comandantes, mas Nossa Senhora
do Rosário fez-nos vencedores”.
Pio V teria querido continuar a guerra contra os turcos, por mar e por terra,
e, num breve de 12 de Março de 1572, dirigido a toda a Cristandade, concedeu, a
todos aqueles que pegavam em armas ou contribuíam com dinheiro para a guerra,
as mesmas indulgências que, no passado, tinham adquirido os cruzados. O seu
sonho era restituir à Cristandade a paz religiosa e política, destruindo os
seus inimigos internos e externos. O grande Papa, no entanto, morreu a 1 de Maio
de 1572.
A Divina Providência tinha disposto que o projecto de São Pio V, o vencedor de
Lepanto, ficasse inacabado. O nome de Lepanto, porém, tornou-se um símbolo: um
símbolo que sintetiza uma teologia da história e uma concepção militante da
vida.
Igreja Militante significa Igreja que combate. O nome de Lepanto recorda que
não só a 7 de Outubro de 1571, mas sempre na história, a Civilização Cristã
teve os seus inimigos e deve ter os seus defensores. O nome de Lepanto expressa
a ideia de que os cristãos que vivem na terra fazem parte de uma Igreja que é
dita militante porque combate para defender a própria fé e a civilização que se
construiu sobre essa fé.
Nesse sentido, Lepanto é uma categoria perene do espírito humano.
Com esse mesmo espírito, um século depois, o Beato Inocêncio XI conduziu uma
guerra santa contra os turcos, que levou à libertação de Viena, em 1683, e, em
1686, à de Buda. Nossa Senhora, acies ordinata, «terrível como um
exército em ordem de batalha» (Ct 6, 10), foi reconhecida patrona e artífice
destas vitórias.
No século XIX, o espírito de Lepanto animou os zuavos pontifícios, que acorreram
a defender Pio IX e os Estados Pontifícios invadidos pela Revolução italiana.
No século XX, levantou-se um novo inimigo contra a Igreja, o comunismo, não
erroneamente definido «o Islão do século XX». O espírito de Lepanto
animou a Cruzada dos requetés, e de muitos outros combatentes, na
guerra civil espanhola contra anarquistas e comunistas.
Na sua radiomensagem de Natal de 1956, no rescaldo da trágica repressão
soviética na Hungria, Pio XII pensou na possibilidade de promulgar uma cruzada
contra o comunismo, no sentido clássico e tradicional do termo; mas Pio XII
morreu em 1958 e, depois da sua morte, com o pontificado de João XXIII,
abriu-se, na Igreja, a era da “distensão” e do desarmamento psicológico e
moral, a ponto de restituir ao Islão as bandeiras conquistadas em Lepanto e de
incluir as cruzadas nos pedidos públicos de “perdão”.
O Concílio Vaticano II não condenou o comunismo, grande inimigo da Igreja no
século XX, e propôs a imagem de uma Igreja já não militante, mas peregrina.
Quando, a 12 de Outubro de 1963, Mons. Franić, bispo croata de Split, propôs
aos Padres conciliares que, no esquema De Ecclesia, ao novo título de
Igreja “peregrina” fosse adicionada a denominação tradicional de “militante”, a
sua proposta foi rejeitada pelos Padres conciliares. A imagem que a Igreja
deveria ter oferecido de si mesma ao mundo não era a da luta e da condenação,
mas da mão estendida ao inimigo e da colaboração ecuménica com todos os homens.
Mas a verdade ou se define contra o erro ou se confunde com o erro. Este é o
caminho ao qual leva o desarmamento: uma Igreja sem luta e sem dogmas, a começar
pelo pecado original e pelo valor redentor da Cruz.
A condição militante da Igreja na terra é consequência do pecado original. O
pecado original criou a necessidade de uma luta constante no interior da alma
humana, que tem como consequência o esforço e o sofrimento. Para o homem
concebido no pecado original, a contrariedade, a adversidade, a dor representam
uma condição necessária para atingir a felicidade plena no Céu e uma felicidade
parcial na terra. Santo Agostinho explica que o homem sofre, dando um sentido
ao próprio sofrimento, ou cai naquele sofrimento que nasce, paradoxalmente, da
ausência do sofrimento[1].
O homem não é feito para o prazer, mas para o heroísmo e a Cruz redentora de
Cristo traça o caminho da nossa existência. O Prof. Plinio Corrêa de Oliveira recorda
que «A cruz é o símbolo da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, de todo o
sofrimento que o católico carrega nesta vida, com o qual ele abre para si, em
união com Nosso Senhor Jesus Cristo, as portas dos Céus. E colocar a cruz de
Nosso Senhor Jesus Cristo mais alto que todas as coisas foi uma preocupação de
toda a civilização cristã. (...) Quando se queria fazer um documento
muito importante, no alto do documento inscrevia-se a cruz. Enfim, em tudo
quanto o homem concebia de mais alto estava a Cruz de Nosso Senhor Jesus
Cristo, que trazia consigo a ideia de que toda a missão d’Ele, não se esgotando
na cruz, tinha, entretanto, nela o seu ponto central. E que, de tudo aquilo que
Nosso Senhor tinha feito, o mais admirável e o mais adorável era o de ter
sofrido e morrido na cruz»[2].
A todos os seus discípulos, Nosso Senhor dirige este convite: «Se alguém
quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me» (Mt 16, 24).
Para seguir Jesus e amá-Lo, a condição essencial é uma renúncia a si mesmo,
isto é, às tendências nativas, e levar a própria cruz: aceitar os padecimentos,
as privações, as humilhações e, em geral, todos os sofrimentos que Deus manda
para nos aperfeiçoar .
Em nome da Cruz, os cristãos sofreram o martírio nos primeiros séculos, e em
nome da Cruz, que lhe apareceu no Céu, o Imperador Constantino triunfou sobre
os seus inimigos, abrindo, com a sua vitória em Saxa Rubra, uma nova época na
história da Igreja.
«In Hoc signo vinces»: em nome da Cruz, os combatentes cristãos
enfrentaram e venceram os seus inimigos nos campos de batalha das Cruzadas e de
Lepanto.
O combate cristão, que é, antes de tudo, uma atitude espiritual, mas que inclui
a possibilidade da legítima defesa, da guerra justa e da “guerra santa”,
pertence à mais pura tradição católica. A história da Igreja está cheia de legítimas
guerras travadas para defender as suas famílias e os seus soberanos, a sua
pátria e a sua fé. Porém, hoje, quem combate para defender a Igreja e a Cristandade
não defende um território, mas, acima de tudo, os princípios. E a guerra já não
é sangrenta, militar, mas é, sobretudo, espiritual, cultural, moral.
Hoje, estamos em guerra: uma guerra de ordem diversa das do passado, mas uma verdadeira
guerra, em várias frentes, internas e externas. O Papa Bento XVI, usando uma
metáfora de São Basílio, comparou a nossa época a uma batalha naval, no
decorrer da noite, num mar tempestuoso. O mar tempestuoso são as águas agitadas
em que se encontra a Igreja; a escuridão da noite é a confusão em que estamos
imersos; a batalha é terrível porque é travada sem exclusão de golpes. É esta a
época em que vivemos: uma época que devemos enfrentar com espírito confiante e
militante.
Há uma guerra militar em que se derrama o sangue, em que a morte física é o
preço a pagar, como nas Cruzadas, em Lepanto e em Viena. As armas são as que
matam os corpos dos guerreiros.
Mas há também outra guerra, menos sangrenta: a das ideias, a guerra que foi combatida,
por exemplo, pelo partido iluminista para preparar a Revolução Francesa, a
guerra lançada por Marx e Lenine para conquistar o mundo. Quando, em Fátima,
Nossa Senhora diz que a Rússia espalhará os seus erros no mundo, está a
referir-se a uma batalha de ideias, porque os erros são ideias deformadas que
determinam os comportamentos, produzem catástrofes na história, e o comunismo é
um erro ideológico que produziu os horrores históricos do século XX.
Mas hoje, na era da atrofia da razão e do desequilíbrio emocional, foi adicionada
uma nova batalha à batalha das ideias, na qual, ao lado dos homens, também combatem
os bons espíritos, os anjos da ordem, e os maus espíritos, os demónios do caos.
O Prof. Plinio Corrêa de Oliveira definiu-a a época da Quinta Revolução. Os demónios,
como os anjos, podem agir não apenas sobre os sentidos externos do homem, mas
também no seu interior, sobre a imaginação, no sistema nervoso.
Os anjos, bons ou maus, influenciam as imaginações externas, excitando os
humores e os sentimentos que favorecem a formação de ideias e que, enfim,
inclinam à acção. Os anjos bons ajudam o senso comum a conhecer a ordem do
universo, a orientar-se para o bem e infundem paz e tranquilidade na alma; os
anjos maus apresentam imagens distorcidas da realidade, infundem perturbação,
inquietação. O campo de batalha dos anjos e dos demónios é, portanto, especialmente
o da imaginação e das tendências.
Esta guerra psicológica e espiritual exige ao combatente cristão o controlo dos
próprios nervos, a calma, a reflexão, o equilíbrio dos poderes da alma e, sobretudo,
o uso contínuo da lógica, a arma que São Miguel empunhou como uma espada contra
a insensata rebelião de Lúcifer.
Não houve maior afirmação lógica na história do que o grito de São Miguel Quis
ut Deus, nenhuma teve tão imensas consequências. Aquela proclamação foi um
acto de guerra que derrotou o inimigo com toda a força que tem em si a verdade
oposta ao erro.
No primeiro momento da criação do universo, Deus manifestou aos anjos o plano
divino da Encarnação. A inteligência dos anjos é intuitiva e não discursiva e o
seu livre-arbítrio foi chamado a aderir àquele plano ou a rejeitá-lo. Lúcifer,
cego pelo orgulho, chamou os outros anjos à rebelião. São Miguel respondeu com
um acto que não era apenas de total fé nos misteriosos desígnios divinos, mas
também de suprema adesão lógica à verdade. Contra Lúcifer, São Miguel empunhou
a espada fulgurante da fé e da razão.
No clima de instabilidade e de confusão que nos rodeia, as nossas armas são as
da fé e da razão, com as quais aderimos à Verdade do Evangelho, proclamada pela
Igreja. Queremos professar esta Verdade e vivê-la com espírito militante.
Quando um cristão, com a ajuda da Graça, conforma a sua vida aos princípios do
Evangelho e combate para defender a verdade, não pode ser impedido por nenhum
obstáculo.
O bom êxito desta luta é resultado, sobretudo, da acção da graça. «Não
esqueçamos, porém –escreve um eminente teólogo, o padre Tanquerey –, que
as graças, que são dadas, são graças de combate, não de repouso, que somos
lutadores, atletas, ascetas, e que devemos, como São Paulo, lutar até ao fim para
merecer a nossa coroa: “Combati o bom combate, terminei a minha carreira, guardei
a fé. Não me resta mais que receber a coroa da justiça que me dará o Senhor:
Bonum certamen surevi, cursum consummavi, fidem servavi. In reliquo reposita
est mihi corona iustitiae quam reddet mihi Dominus” (II Tm 4, 7-8)»[3].
A graça do combate é a graça que exige a nossa vocação. Cada homem tem a sua
vocação específica. O que Deus pede a cada alma constitui a sua vocação, que é
a forma especial com que a Providência quer que todos operem e se desenvolvam.
Cada homem tem uma vocação especial porque foi querido e amado por Deus de maneira
diferente, porque a vontade de Deus é diferente para cada criatura e cada
criatura, que do nada se aproximou do tempo, é irrepetível. Cada homem tem uma
vocação específica, diferente da de qualquer outro homem, porque Deus ama cada
um de nós com um amor especial.
Estas diferentes vocações convergem no único serviço à Igreja, no único amor a
Deus, como explica Santa Teresinha na célebre página da História de uma alma,
em que descreve a multiplicidade das vocações que desejaria abraçar: «Ser
tua esposa, ó Jesus, ser carmelita, ser, pela minha união contigo, a mãe das
almas, isto deveria bastar-me... Não é assim... Esses três privilégios,
Carmelita, Esposa e Mãe, são, sem dúvida, a minha vocação. Entretanto, sinto em
mim outras vocações. Sinto-me com a vocação de GUERREIRO, de PADRE, de
APÓSTOLO, de DOUTOR, de MÁRTIR. Enfim, sinto a necessidade, o desejo de
realizar por Ti, Jesus, todas as obras mais heróicas... Sinto na minha alma a
coragem de um Cruzado, de um zuavo pontifício. Quisera morrer, num campo de
batalha, pela defesa da Igreja... (...)».
Cada alma tem a sua vocação porque tem uma função diferente no Corpo da Igreja.
Aquele que tem a vocação matrimonial, não a tem para si, mas para a Igreja. Aquele
que tem a vocação religiosa, não a tem para si, mas para a Igreja. Aquele que
tem a vocação do lutador, não a tem para si, mas para a Igreja: morrer, num
campo de batalha, pela defesa da Igreja...
Há as vocações das pessoas, há as vocações das famílias, que não são apenas as naturais,
mas também as famílias espirituais, com os seus carismas; há, depois, as
vocações dos povos, de que tanto falou o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira.
Cada nação tem uma vocação específica, que é o papel que a Providência lhe
confia na história. Mas não nascemos apenas dentro de uma família e de um povo.
Vivemos dentro de uma época histórica. E como a história também é uma criatura
de Deus, Deus pede algo diferente a cada época histórica. Cada época histórica
tem a sua vocação. A vocação dominante dos primeiros séculos da Igreja foi a
disponibilidade para o martírio. Existe uma vocação do século XXI, dentro da
qual encontrar a nossa vocação pessoal?
A vocação não é a escolha de um plano para a nossa vida, mas a correspondência
a um plano que Deus nos apresenta. Creio que a grande vocação da nossa época seja
a de corresponder ao plano divino que Nossa Senhora nos revelou em Fátima,
encerrando-o nestas palavras: Por fim, o Meu Imaculado Coração triunfará.
Corresponder a esta vocação significa combater
para realizar a promessa do Triunfo do Imaculado Coração de Maria. O triunfo do
Imaculado Coração de Maria é um grande projecto da Divina Providência. Este
desígnio divino deve realizar-se com espírito lógico e combativo, e, sobretudo,
com imensa confiança, a mesma confiança que tiveram S. Miguel e os anjos fiéis diante
do grande plano da Encarnação do Verbo.
Na Idade Média, arquitectos, pedreiros, ferreiros, carpinteiros, bispos,
príncipes, personalidades ilustres e desconhecidas, unidas pelo mesmo desejo de
dar glória a Deus através das pedras que se elevavam ao Céu, participavam da
construção de uma catedral. Também nós somos chamados a participar na
construção de uma catedral. Cada um de nós, hoje, é chamado a construir, sobre
as ruínas do mundo moderno, a imensa catedral do Imaculado Coração de Maria,
que nada mais é do que o Seu Reino nas almas e na sociedade.
O triunfo do Imaculado Coração de Maria é também o triunfo da Igreja, porque o Imaculado
Coração de Maria é o próprio Coração da Igreja.
O triunfo é o culminar de uma guerra vitoriosa. O triunfo, anunciado por Nossa
Senhora, é o Reino, é um acontecimento social, e a guerra para acelerar o
momento da vitória está destinada a acontecer não a nível individual, mas a
nível social, confessando publicamente a nossa fé.
No discurso, de 21 de Janeiro de 1945, às Congregações Marianas de Roma, Pio
XII afirma: «O tempo presente exige católicos destemidos, para os quais seja
natural confessar abertamente a sua fé, com as palavras e com os actos, sempre
que a lei de Deus e o sentimento de honra cristã o exijam. Homens verdadeiros,
homens íntegros, firmes e intrépidos! Aqueles que não são integralmente firmes e
intrépidos, o próprio mundo, hoje, descarta-os, rejeita-os e pisoteia-os».
É este o espírito de Lepanto. A disposição de espírito que animava São Pio V e
o Beato Inocêncio XI, e com a qual combatiam os guerreiros de Lepanto e de
Viena é uma atitude do espírito que nunca se esvaiu, que ressurge sempre nos
momentos de crise da civilização.
Este espírito não está morto porque é inextinguível na alma humana. É o
espírito de quem sabe que a Igreja, da qual somos membros, se chama militante
porque combate na terra e se o tempo da glória é no Paraíso e o tempo do
sofrimento é no Purgatório, o tempo da terra, que é o nosso, é o tempo da luta:
luta, às vezes dolorosa, que nos faz antecipar os sofrimentos do Purgatório,
mas luta sempre entusiasmante, porque nos faz antegustar e, sobretudo, abre-nos
as alegrias eternas do Paraíso.
Roberto de Mattei
[1] Santo Agostinho, Confissões,
1, 1.
[2] Esta e outras citações em R. de Mattei, Plinio Corrêa de
Oliveira. Profeta do Reino de Maria, Artpress, São Paulo, 2015, pp.
225-226.
[3] A.
Tanquerey, Compendio di teologia ascetica e mistica, Edizioni San
Paolo, Cinsisello Balsamo 2018, n. 227, p. 132.
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«Tudo me é permitido, mas nem tudo é conveniente» (cf. 1Cor 6, 12).
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