A pedido de Sua Excelência Reverendíssima
Mons. Carlo Maria Viganò, antigo Núncio Apostólico nos Estados Unidos da
América, o portal Dies Iræ traduziu e publica, em exclusivo para
Língua Portuguesa, uma longa reflexão do Arcebispo sobre o Juramento
Anti-Modernista, de São Pio X, e outras questões associadas.
7 de
Dezembro de 2020
S. Ambrosii, Episcopi et Confessoris
et Ecclesiæ Doctoris
Porque me afastei, depois arrependi-me, e, ao compreender,
castiguei o meu corpo. Sinto-me envergonhado e confundido,
pois carrego a desonra da minha juventude
Jr 31, 19
Num
artigo publicado, no LifeSiteNews, no passado dia 28 de Setembro[1],
a Dr.ª Maike Hickson dirigiu-me algumas perguntas para completar as minhas
declarações, relatadas por Marco Tosatti[2],
sobre o Concílio Vaticano II.
O JURAMENTO ANTI-MODERNISTA
Os pontos a que respeita esta análise referem-se ao Juramento Anti-Modernista que
São Pio X promulgou com o Motu Proprio Sacrorum Antistitum, de 1 de Setembro
de 1910[3],
três anos após a publicação do Decreto Lamentabili[4],
da Encíclica Pascendi Dominici Gregis[5].
O artigo VI da Pascendi estabelecia a instituição, «o quanto antes»,
do Conselho de Vigilância em todas as Dioceses, enquanto o artigo VII intimava o
envio, «à Santa Sé», dentro de um ano e, depois, a cada três anos,
daquela «exposição diligente e juramentada» sobre a actuação das
prescrições da Encíclica e «das doutrinas que circulam no clero», depois
simplesmente denominada “relação Pascendi”[6].
Notar-se-á a diferença de abordagem da Santa Sé, diante da gravíssima crise
doutrinal daqueles anos, em relação a um sinal totalmente oposto adoptado depois
do fim do Pontificado de Pio XII.
Os Inovadores lamentaram-se do que definiram “um clima de caça às bruxas”, mas
que teve, incontestavelmente, o mérito de afugentar os inimigos da Igreja, que
se escondiam no seu interior, por meio de uma acção de controlo e prevenção. Se
considerarmos a heresia como uma pestilência que aflige o corpo eclesial, dever-se-á
reconhecer a São Pio X ter agido com a sabedoria do médico no extirpar a doença
e no isolar aqueles que contribuíam para a sua propagação.
A ABOLIÇÃO DO JURAMENTO E DO ÍNDICE
Ao retomar a ligação ideológica que havia destacado entre o Concílio e a Declaração
de Land O’Lakes, de 23 de Julho de 1967, Maike e Robert Hickson assinalaram,
oportunamente, uma outra interessante “coincidência”: a abolição, a 17 de Julho
de 1967, da obrigação de todos os clérigos prestarem o Juramento Anti-Modernista
até então prescrito. Uma abolição, passada quase em silêncio, através da
substituição da fórmula anterior – que previa a Professio fidei e o Jusjurandum
antimodernisticum – pelo Símbolo Apostólico e esta brevíssima frase: «Firmiter
quoque amplector et retineo omnia et singula quæ circa
doctrinam de fide et moribus ab Ecclesia, sive solemni iudicio definita sive
ordinario magisterio adserta ac declarata sunt, prout ab ipsa proponuntur, præsertim ea
quæ
respiciunt mysterium sanctæ Ecclesiæ Christi,
eiusque Sacramenta et Missæ Sacrificium atque Primatum
Romani Pontificis».
A nota da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé indicava: «Formula
deinceps adhibenda in casibus in quibus iure præscribitur
Professio Fidei, loco formulæ Tridentinæ et
iuramenti antimodernistici»[7].
É de notar que esta inovação seguiu a abolição do Index librorum proibitorum,
ocorrida a 4 de Fevereiro de 1966, depois de, a 7 de Dezembro de 1965, Paulo VI
ter redefinido as competências e a estrutura da Congregação e mudado o seu
antigo nome de Santo Ofício para o actual, com o Motu Proprio Integræ servandæ: «Mas,
uma vez que a caridade exclui o medo (1Jo 4, 18), a defesa da fé é agora melhor
provida com a promoção da doutrina, de modo que, enquanto se corrigem os erros
e os errantes são gentilmente chamados ao bem, os arautos do evangelho recuperam
novas forças. Além disso, o progresso da cultura humana, cuja importância no campo
religioso não deve ser negligenciada, garante que os fiéis sigam as directrizes
da Igreja com maior adesão e amor se, tanto quanto possível, em matéria de fé e
costumes lhes são dados a entender, com clareza, os motivos das definições e
das leis»[8].
A abolição do Jusjurandum antimodernisticum fazia parte de um projecto
de desmantelamento da estrutura disciplinar da Igreja, precisamente quando era
maior a ameaça de adulteração da Fé e da Moral por parte dos Inovadores. Esta
operação confirma a intenção de quem, face ao ataque ultra-progressista
iniciado no Concílio, não só deixava liberdade de acção ao inimigo, mas privava
a Hierarquia dos meios disciplinares com que se proteger e defender. E foi uma
deserção, uma traição de gravidade sem precedentes, especialmente naqueles anos
tremendos: como se, em pleno combate, o comandante mandasse depor as armas
diante do inimigo enquanto este se preparava para invadir a Cidadela.
INADEQUAÇÃO DA NOVA FÓRMULA
A inadequação da fórmula de 1967 também é admitida pelo P. Umberto Betti, OFM,
nas Considerações Doutrinais, que surgiram em 1989, depois da
promulgação da nova fórmula da Profissão de Fé: «Esta afirmação abrangente, se recomendada pela sua brevidade, não estava imune
a uma dupla desvantagem: a de não distinguir, claramente, as verdades propostas
a crer como divinamente reveladas daquelas propostas de forma definitiva,
embora não divinamente reveladas; e a de passar em silêncio os ensinamentos do supremo
magistério sem a conotação do divinamente revelado ou da proposição definitiva»[9].
Parece compreender que a preocupação da Congregação foi motivada pela
necessidade de incluir no Juramento de fidelidade também o próprio Concílio e o
magistério que não têm «a conotação do divinamente revelado ou da proposição
definitiva», depois do qual, com ligeireza – na onda do desmantelamento
conciliar –, a primeira fórmula tinha substancialmente deixado entender que o
conteúdo do Juramento Anti-Modernista não tinha mais qualquer valor e que,
portanto, se podia aderir – como realmente aconteceu – às doutrinas heterodoxas
do Modernismo.
OS REBELDES FAZEM SUAS AS EXIGÊNCIAS DO COMUNISMO
Não posso afirmar com certeza que o P. Theodore M. Hesburgh estivesse
ciente da iminente abolição da Professio Fidei e do Juramento Anti-Modernista
quando preparou a Declaração de Land O’Lakes. No entanto, creio ser
evidente que o clima de rebelião daqueles anos na Europa e nos Estados Unidos
levou, em grande parte, à crença de que Roma aprovava, se não os mais
escandalosos excessos, certamente as formas de compromisso com o progressismo.
Recordo que o Cardeal Alfrink, a 9 de Outubro de 1966, apresentara, em Utreque,
o “Novo Catecismo” holandês, como expressão de todos os erros que o espírito
do Concílio já considerava estabelecidos. No ano seguinte, a 10 de Outubro
de 1967, durante o III Congresso Mundial para o Apostolado dos Leigos, reunido
em Roma, foi comemorada a morte de Ernesto Che Guevara, morto, na véspera, numa
acção de guerrilha. Nos meses seguintes, ocorreram violentas ocupações
estudantis das Universidades, incluída a Católica de Milão, para protestar
contra a guerra do Vietname. E no dia 5 de Dezembro, graças aos ofícios de
Agostino Casaroli, foi recebido, em audiência, o Presidente da Assembleia Estudantil
da Católica, Nello Canalini, pelo Substituto da Secretaria de Estado, Mons.
Giovanni Benelli. A 21 de Dezembro, apesar dos apelos da Ordem, três sacerdotes
e uma freira uniram-se aos guerrilheiros na Guatemala e, dois dias depois, por
ocasião da Audiência de Lindon Johnson no Vaticano, houve protestos de
católicos progressistas, incluindo o Circolo Maritain de Rimini. Seguiu-se a
condenação da guerra do Vietname, pelo Cardeal Lercaro (1 de Janeiro de 1968),
e a proclamação anti-imperialista de Fidel Castro, escrita por quatro sacerdotes.
A 31 de Janeiro, o bispo brasileiro Jorge Marcos defendeu a revolução durante
uma intervenção televisiva. No dia 16 de Fevereiro, os Presidentes nacionais da
FUCI, Mirella Gallinaro e Giovanni Benzoni, enviaram uma carta aberta aos
professores universitários na qual defendiam os motivos do protesto estudantil.
Desde então, os protestos, inclusive violentos, multiplicaram-se, dando origem
ao tristemente famoso Sessantotto. Não é de admirar: Che Guevara foi
formado num colégio de Jesuítas, em Santiago de Cuba, e a revolução no campo
político procede sempre de uma revolução no campo teológico.
A RENDIÇÃO DA HIERARQUIA À SUBVERSÃO
É evidente que o clima político daqueles anos foi o terreno fértil da Revolução
e é igualmente evidente que a Igreja não reagiu com a firmeza e a determinação
que seriam necessárias; além disso, mesmo por parte dos Governos nacionais, a
resposta foi absolutamente ineficaz. Entende-se, portanto, que o clima de
rebelião em que as instâncias heréticas do progressismo católico poderiam
impor-se não podiam deixar de envolver os pretensos intelectuais e teólogos,
tanto de Land O’Lakes como de muitas universidades de todo o mundo. A
Hierarquia, em vez de se questionar sobre a causa daquelas agitações, procurou,
desajeitadamente, deplorar os seus excessos, justamente porque aquela causa
residia no Vaticano II e no seu impulso contestatário, apesar das proclamações
de Paulo VI: «Depois do Concílio, a Igreja gozou, e ainda goza, de um grande
e magnífico despertar, que a Nós, em primeiro lugar, agrada reconhecer e
encorajar; mas a Igreja também sofreu, e ainda sofre, com um turbilhão de ideias
e factos que, certamente, não estão de acordo com o bom Espírito e não prometem
aquela renovação vital que o Concílio prometeu e promoveu. Uma ideia de dupla acção
também se instalou em certos círculos católicos: a ideia da mudança, que tomou
o lugar, para alguns, da ideia de actualização, prenunciada pelo Papa João, de
venerável memória, atribuindo, assim, contra a evidência e contra a justiça,
àquele fidelíssimo Pastor da Igreja critérios que já não são inovadores, mas,
às vezes, até subversivos do ensinamento e da disciplina da própria Igreja»[10].
Estes «critérios, que já não são inovadores, mas, às vezes, até subversivos
do ensinamento e da disciplina da própria Igreja» estão, hoje, diante dos
nossos olhos, e foram, em poucos anos, quando foi imposta a todo o povo cristão
a nova Missa, summa da subversão em âmbito litúrgico.
Lembro-me bem do clima daqueles anos e do desânimo de tantos Pastores,
professores e teólogos diante da arrogância dos rebeldes e da violência dos
seus apoiantes. Mas também me lembro da pavidez e do medo de alimentar os
confrontos: fruto daquele sentimento de inferioridade que afligia, sobretudo,
os líderes da Igreja e do Estado. Por outro lado, depois da operação de
desmantelamento do hieratismo do Pontificado de Pio XII, por Roncalli e
Montini, aquela sensação de fracasso era a única resposta da parte de um Episcopado
habituado à obediência cega, especialmente diante da impunidade de que gozavam
os seus Irmãos modernistas. Era a época em que o abade beneditino de
Michealsberg (Alemanha) pedia a redução ao estado laical em protesto contra os “métodos
autoritários” do Vaticano, acabando por se casar logo de seguida. Era a época
da Carta dos Setecentos, em que 774 padres e leigos franceses escreveram
a Paulo VI para contestar as posições da Hierarquia, para pedir a renúncia ao
poder temporal e para estar mais próxima dos pobres. Hoje, aqueles setecentos
rebeldes carregariam aos ombros Bergoglio, que levou a cumprimento aquilo que
Concílio havia iniciado imprevisivelmente.
AS «CASAMATAS» EM ÂMBITO ECLESIÁSTICO
Na véspera de 1968, cancelar a Professio fidei e o Juramento Anti-Modernista
foi uma decisão infeliz, porque assim como a tomada da Bastilha foi preparada
nos conventículos da Maçonaria, a Revolução de 68 encontrou nas Universidades
católicas a própria base ideológica e formou os mais exagitados protagonistas,
alguns dos quais foram expoentes políticos da extrema-esquerda. Não pedir que
prestassem juramento os professores daquelas universidades e os capelães das
associações laicais, equivalia a autorizá-los a transmitir as suas ideias
heterodoxas, deixando entender que a condenação do Modernismo havia caído. Tal
permitiu que os Inovadores tomassem o poder, segundo os métodos analisados por
Antonio Gramsci, que individuava no aparato do Estado – escola, partidos,
sindicatos, imprensa, associações – as «casamatas» do inimigo a conquistar
numa acção paralela à guerra de trincheira[11].
Nota, a tal propósito, Alexander Höbel, num ensaio sobre o filósofo fundador do
Partido Comunista de Itália: «[O Partido Comunista], antes de assumir o
poder político, deve lutar pela hegemonia na sociedade civil, o que significa
hegemonia no plano ideológico e cultural, mas também significa conquistar –
durante uma longa “guerra de posições”, que se alterna em fases de “guerra de
movimento” – aquelas “casamatas”, aquelas “trincheiras”, aquela miríade de
pequenos e grandes centros de poder (ou de resistência) popular que são os
sindicatos, as cooperativas, os Municípios, as associações e toda a rede de
estruturas que tornam, hoje, a nossa sociedade civil imensamente mais complexa do
que a da era de Gramsci. É no decorrer deste processo que a classe subordinada “se
torna um sujeito histórico”, uma classe por si; ou seja, começa a tornar-se classe
dirigente e lança as bases para se tornar também classe dominante, isto é, para
conquistar o poder político com base no consenso e numa partilha de massa, expressão
de um novo “bloco histórico”. Nesta luta hegemónica, o proletariado não só
constrói uma política de alianças, mas traz à luz da consciência política
aquelas mudanças já ocorridas no plano estrutural, do desenvolvimento das
forças produtivas, deixando claro que a transformação política e social não é
apenas possível, mas necessária. Em tal quadro, é claro que, em relação à aproximação
aos potenciais aliados, a “única possibilidade concreta é o compromisso, já que
a força pode ser usada contra os inimigos, não contra uma parte de si mesmo que
se quer assimilar rapidamente”»[12].
Se aplicarmos as recomendações de Gramsci ao que aconteceu no seio da Igreja no
século passado, podemos constatar que a obra de conquista das «casamatas»
eclesiásticas foi conduzida com os mesmos métodos subversivos; certamente, a
infiltração do deep state nas instituições civis e da deep church
nas instituições católicas responde a este critério.
A ISENÇÃO DO JURAMENTO PARA AS UNIVERSIDADES ALEMÃS
No que diz respeito à isenção do Juramento para os departamentos católicos das Universidades
alemãs à época de São Pio X, parece-me compreender – pela documentação que
consultei[13]
– que esta derrogação não foi, efectivamente, concedida, mas extorquida, de
facto, contra as disposições da Santa Sé, graças à indulgência de alguns
membros do Episcopado alemão. Se o Cardeal Walter Brandmüller evidenciou as
consequências desta isenção para a escola teológica na Alemanha, da minha parte
limito-me a observar que tais são evidentes na formação de Joseph Ratzinger,
que frequentou o Instituto Superior de Filosofia e Teologia de Freising, o
Seminário Herzogliches Georgianum de Munique e a Universidade Ludwig Maximilian
de Munique. O jesuíta Karl Rahner, entre outros, também se formou na Alemanha: o
seu currículo valeu-lhe a nomeação para perito do Concílio por iniciativa de
João XXIII, amigo do modernista Bonaiuti.
É a tal respeito interessante o que notou o Prof. Claus Arnold no seu estudo The
Reception of the Encyclical Pascendi in Germany: «A partir de uma
investigação global, pode-se reconstruir que a Encíclica Pascendi foi
implementada de forma muito aproximada, pelo menos segundo os padrões de uma
regra burocrática centralizada. Nesta perspectiva, pode-se reconhecer um alto
grau de indolência e resistência episcopal, mesmo na Alemanha. Pio X tinha
todos os motivos para estar desapontado: a suspeita seita secreta dos
modernistas dentro da Igreja não podia ser descoberta pelos bispos e o
juramento anti-modernista de 1910 pode ser visto como uma expressão de
insatisfação por esta cegueira episcopal. Todavia, o elevado desvio da
obrigação de prestar contas e as respostas frequentemente formalizadas e de
imunização interpretativa dos bispos não deveriam induzir-nos a subestimar o
efeito da encíclica»[14].
Certamente, a disciplina então em vigor, tanto nos Dicastérios Romanos como nas
Dioceses do mundo, impediu o completo boicote das disposições providencialmente
comunicadas por São Pio X. Tanto é que o próprio Joseph Ratzinger, em 1955, foi
acusado de modernismo pelo correlator da dissertação para a habilitação ao
ensino, o Prof. Michael Schmaus, contra o colega Gottlieb Söhngen, que com
Ratzinger partilhava a abordagem oposta. O jovem teólogo teve de corrigir a sua
dissertação nos pontos em que essa insinuava uma subjectivação do conceito de
Revelação[15].
O JURAMENTO NO CONCÍLIO
Confirmo que, segundo as normas canónicas então em vigor, todos os bispos que
participaram no Concílio Vaticano II e todos os clérigos com cargos nas Comissões
prestaram o Jusiurandum antimodernisticum, juntamente com a Professio
fidei. Certamente, aqueles que, no Concílio, rejeitaram os esquemas
preparatórios preparados pelo Santo Ofício e desempenharam um papel decisivo na
redacção dos textos mais polémicos, faltaram ao juramento feito sobre os Santos
Evangelhos; mas não penso que para eles isto representasse um grave problema de
consciência.
O CREDO DO POVO DE DEUS
O Credo do Povo de Deus, pronunciado, por Paulo VI, a 30 de Junho de
1968, na Capela Papal, com o qual se concluía o Ano da Fé, deveria ter
representado a resposta da Sé Apostólica à crescente onda de contestações
doutrinárias e morais; sabemos que esse foi fortemente recomendado por
alguns Purpurados. Jacques Maritain colaborou na sua redacção que, através do
Cardeal Charles Journet, recebido em audiência, por Paulo VI, entre 1967 e
1968, apresentou um esquema de Profissão de Fé a opor, de alguma forma, ao
herético Catecismo Holandês, publicado pouco antes e que naqueles meses estava
a ser examinado por uma Comissão cardinalícia da qual fazia parte o próprio
Journet. Anteriormente, novamente a pedido de Paulo VI, tinha sido preparada outra
profissão de fé pelo dominicano Yves Congar, que foi rejeitada. Mas há um outro
detalhe: «Numa passagem, Maritain citara, explicitamente, o comum testemunho
que israelitas e muçulmanos dão da unidade de Deus juntamente com os cristãos. No
seu Credo, porém, Paulo VI dá graças à bondade divina pelos “numerosíssimos
crentes” que partilham, com os cristãos, a fé no Deus único, mas sem mencionar,
de modo explícito, o hebraísmo e o islamismo»[16].
Descobrimos, assim, que, se não fosse pela providencial revisão do Santo
Ofício, aquele Credo teria introduzido a doutrina de Nostra Ætate, que
mais tarde foi retomada pelos Sucessores de Montini e que, com Bergoglio,
encontrou a sua coerente expressão na Declaração de Abu Dhabi[17].
A ABDICAÇÃO DA AUTORIDADE APOSTÓLICA
E aqui descobrimos mais um punctum dolens do modo de agir que une
Maritain e Montini: «Na introdução ao texto preparado a pedido de Journet,
Maritain havia acrescentado algumas sugestões de método. Segundo ele, era oportuno
que o Papa utilizasse um novo procedimento, confessando a sua profissão
de fé como um puro e simples testemunho: “O testemunho da nossa fé, eis o que
queremos levar diante de Deus e dos homens”. Segundo Maritain, a pura e simples
confessio fidei teria ajudado melhor a multidão das almas atribuladas, sem
ter de apresentar a profissão de fé como mero acto de autoridade: “Se o
Papa tivesse de prescrever ou de impor a sua profissão de fé em nome do seu
magistério, devesse dizer toda a verdade, provocando tempestades, ou devesse usar
de cautela, evitando lidar com os pontos mais perigosamente ameaçados, e isso
seria a pior de todas as coisas”. A coisa mais eficaz e necessária era
confessar clara e fortemente a integridade da fé da Igreja sem anatematizar
ninguém»[18].
Dizer toda a verdade, segundo Maritain, teria provocado tempestades. A
alternativa, ou seja, usar de cautela, «evitando lidar com os pontos mais
perigosamente ameaçados», já tinha sido adoptada no Concílio. Assim, uma
vez mais, escolheu-se o compromisso. A mediocritas erigida como método
de governo na Igreja, o código do novo magistério puramente proposicional que
evite «qualquer alusão à forma anatemática. Mas em nome daquele que, actualmente,
ocupa a sede do apóstolo Pedro. Para que todas as ambiguidades sejam excluídas»[19].
O Santo Ofício acrescenta também um interessante comentário que poderíamos
reavaliar hoje, especialmente depois de Fratelli tutti: «Segundo
Duroux, deve-se também esclarecer que, quando a Igreja trata de assuntos
temporais, não tem por objectivo estabelecer um paraíso na terra, mas
simplesmente tornar a condição presente dos homens menos desumana. Uma inserção
que servisse para limpar o campo de interpretações ambíguas sobre as
posições assumidas por grandes sectores eclesiais, especialmente na América
Latina, diante das injustiças políticas e sociais»[20].
Com aquela profissão de fé, «sem ser uma definição dogmática propriamente
dita, e ainda que com algum desenvolvimento, exigido pelas condições
espirituais do nosso tempo»[21],
tentou-se fazer com que o Papa dissesse o que havia sido silenciado pelo
Concílio: note-se que o texto do Credo reporta 15 citações da Lumen Gentium,
enquanto menciona por 16 vezes os actos do Magistério infalível precedente,
aliás, apenas indicando a referência numérica de Denzinger.
Em qualquer caso, esta Profissão de fé nunca foi adoptada juntamente com o
juramento e serviu mais para silenciar as mentes exasperadas dos Pastores e dos
fiéis[22]
do que para reconduzir os rebeldes à ortodoxia católica.
Gostaria de destacar um outro elemento, que não deve ser subestimado, presente
nas afirmações de Maritain: «Se o Papa tivesse de prescrever ou de impor a
sua profissão de fé em nome do seu magistério…». Aqui está o ponto
principal sobre o qual gira toda a questão: a abdicação da autoridade pela
própria Autoridade. Segundo esta abordagem, o Papa não deve sequer dar a
impressão de prescrever ou impor nada e se, per accidens, Paulo VI o fez,
hoje estamos na situação desejada, há cinquenta anos, pelo pensador francês:
certamente, Bergoglio não tem «de prescrever ou de impor a sua profissão de
fé em nome do seu magistério» e aquele «usar de cautela, evitando lidar
com os pontos mais perigosamente ameaçados» já se transformou numa
afirmação flagrante e descarada de um contra-magistério que, embora canonicamente
privado de qualquer autoridade apostólica, tem, no entanto, a força explosiva
das palavras daquele que o mundo reconhece como Vigário de Cristo, Sucessor do
Príncipe dos Apóstolos, Romano Pontífice. Assim, apesar de não aparentar, Jorge
Mario Bergoglio explora a sua autoridade e a visibilidade que os grandes meios
de comunicação lhe conferem para demolir a Igreja de Cristo. E se o erro pode afirmar-se
impunemente «sem anatematizar ninguém», a “forma anatematizada” é
amplamente utilizada contra quem defende a ortodoxia católica ou denuncia a
fraude em curso. É inútil recordar que o «usar de cautela, evitando lidar
com os pontos mais perigosamente ameaçados» inclui, hoje, não só os
aspectos doutrinais, mas também os morais, sustentando os desvios gravíssimos
em termos de teoria de género, de homossexualidade, transexualismo e
concubinato.
RATZINGER E O JURAMENTO ANTI-MODERNISTA
É evidente que Joseph Ratzinger deve ser incluído entre aqueles que fizeram o
juramento; que ele tenha «desempenhado um papel crucial no derrubar os
esquemas preparatórios do Concílio e iniciar uma abordagem completamente nova»,
e que, fazendo-o, quebrou o juramento, é, igualmente, pacífico. Se, ao fazê-lo,
Ratzinger teve plena consciência de cometer um sacrilégio, só Deus, que
perscruta o íntimo dos corações, é que o sabe.
Também me parece inegável que há muitos dos seus escritos em que emergem tanto
a formação hegeliana quanto a influência do Modernismo, como evidenciou,
admiravelmente, o Prof. Enrico Maria Radaelli nos seus ensaios e como a nova
biografia do Papa Bento XVI, escrita por Peter Seewald, confirma com abundância
de particulares e numerosas fontes. A tal respeito, creio que é evidente que as
declarações de Joseph Ratzinger, relatadas por Seewald, desdigam, em grande
parte, aquela hermenêutica da continuidade que Bento XVI teorizou,
talvez como prudente retratação do entusiasmo de um tempo.
Creio, todavia, que, naquela época, o papel de Prefeito da Congregação para a
Doutrina da Fé e, finalmente, a eleição ao Sólio tenham determinado, pelo menos,
alguma resipiscência sobre os erros cometidos e as ideias professadas. Porém,
seria desejável que ele, especialmente em consideração ao Juízo divino que o
aguarda, se distanciasse definitivamente daquelas proposições teologicamente
erróneas – refiro-me, em particular, à Introdução ao Cristianismo – que,
mesmo hoje, se divulgam nas Universidades e nos Seminários que ainda se ornamentam
do título de católicos. Delicta juventutis meæ et
ignorantias meas ne memineris Domine (Sl 25, 7).
† Carlo
Maria Viganò, Arcebispo
[2] https://www.marcotosatti.com/2020/09/14/vigano-intervista-cattolici-pro-aborto-rinnegano-la-chiesa/.
[3] São Pio
X, Motu Proprio Sacrorum Antistitum, quo quaedam statuuntur leges ad
Modernismi periculum propulsandum, 1 de Setembro de 1910 – http://www.vatican.va/content/pius-x/la/motu_proprio/documents/hf_p-x_motu-proprio_19100901_sacrorum-antistitum.html.
Note-se que o site da Santa Sé publica o documento apenas no texto latino, sem
tradução em língua corrente, ao contrário de todos os textos recentes.
[4] Sagrada
Congregação do Santo Ofício, Decreto Lamentabili sane exitu, 3 de Julho
de 1907 – http://www.unavox.it/Documenti/doc0177_Lamentabili.htm.
[5] São Pio
X, Encíclica Pascendi Dominici gregis sobre as doutrinas modernistas, 8 de
Setembro de 1907 – http://www.vatican.va/content/pius-x/pt/encyclicals/documents/hf_p-x_enc_19070908_pascendi-dominici-gregis.html.
[6] Cf. La
Civiltà Cattolica, 1907, 4, 106: «Queremos e mandamos que, passado um
ano da publicação das presentes Letras, e em seguida, depois de cada triénio,
com exposição diligente e juramentada os Bispos informem a Santa Sé a respeito
do que nestas mesmas Letras se prescreve e das doutrinas que circulam no clero
e particularmente nos seminários e outros Institutos católicos, não excetuando
nem sequer aqueles que estão isentos da autoridade do Ordinário. Ordenamos a
mesma coisa aos Superiores gerais das Ordens religiosas, com relação aos seus
súbditos» (art. VII). A esse respeito, veja-se: Tra competenze e
procedure: la gestione dell’operazione, in: The Reception and
Application of the Encyclical Pascendi, Studi di Storia 3, coordenado por
Claus Arnold e Giovanni Vian, Edizioni Ca’ Foscari, 2017 – https://edizionicafoscari.unive.it/media/pdf/books/978-88-6969-131-7/978-88-6969-131-7-ch-03_mPQxGzC.pdf.
[7] Cf. AAS,
1967, pág. 1058 – http://www.vatican.va/archive/aas/documents/AAS-59-1967-ocr.pdf.
[8] Paulo
VI, Carta Apostólica em forma de Motu Proprio Integrae servandae, 7 de Dezembro
de 1965 – http://w2.vatican.va/content/paul-vi/it/motu_proprio/documents/hf_p-vi_motu-proprio_19651207_integrae-servandae.html.
[9] Considerações
doutrinárias sobre a Profissão de fé e o Juramento de fidelidade, in: Notitiæ 25
(1989) 321-325 – https://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_19880701_professio-fidei-cons-dott_it.html.
[10] Paulo
VI, Audiência geral, 25 de Abril de 1968 – http://w2.vatican.va/content/paul-vi/it/audiences/1968/documents/hf_p-vi_aud_19680425.html.
[11] Cf. A. Gramsci, Quaderni del carcere, coordenado por V. Gerratana, Turim,
Einaudi, 1975, pp. 1566-1567.
[12] Cf. Alexander Höbel, Gramsci e
l’egemonia. Complessità e trasformazione sociale, in https://malacoda4.webnode.it/gramsci-e-l-egemonia-complessita-e-trasformazione-sociale/.
[13] La Civiltà Cattolica, ano 65, 1914,
vol. 2, La parola del Papa e i suoi pervertitori, pág. 641-650. Em relação
ao discurso de Pio X no Consistório de 27 de Maio de 1914 (AAS 28 de Maio de
1914, ano VI, vol. VI, n. 8 pp. 260-262): «O Papa aqui refere-se, sobretudo,
sobretudo ao juramento anti-modernista que, há cerca de cinco anos, deveria ter
sido imposto aos professores de teologia das Universidades do Império...» (página
648). O trecho do discurso de Pio X, no Consistório, é o seguinte: «Se alguma
vez encontrardes aqueles que se vangloriam de crentes, devotos ao Papa, e
querem ser católicos, mas teriam por maior insulto serem chamados clericais, dizei-lhes
solenemente que o filhos devotos do Papa são os que obedecem à sua palavra e o
seguem em tudo, e não os que estudam os meios para fugir às suas ordens ou para
o obrigar, com insistências dignas de melhor causa, a isenções ou dispensas
tanto mais dolorosas quanto mais são de dano e de escândalo». A 30 de Maio
de 1914, o L’Osservatore Romano respondeu com uma nota: «Vimos que
alguns jornais, comentando o discurso, do Santo Padre, dirigido, na passada
quarta-feira, aos novos Cardeais, insinuaram, para confundir as ideias e turbar
as almas ou para outros fins, que Sua Santidade, falando de perniciosas
isenções ou dispensas que se insistem em obter dele, quis aludir ao juramento
anti-modernista na Alemanha. Tal é completamente falso e parece-nos que o equívoco
a esse respeito não deveria ser possível. A única passagem daquele discurso que
se refere, de maneira particular, à Alemanha, embora não a ela exclusivamente,
é aquela sobre as associações mistas e nela o Pontífice nada fez senão
reafirmar os princípios que desenvolveu na Encíclica Singulari quadam».
[14] «In a global survey it can be reconstructed that
the Encyclical Pascendi was implemented very inchoately, at least according to
the standards of a centralized bureaucratic rule. In this perspective, a high
degree of episcopal indolence and resistance can be acknowledged, even in Germany.
Pius X had every reason to be disappointed: the suspected secret sect of the
modernists within the Church could not be uncovered by the bishops, and the
anti-modernist oath of 1910 can be seen as an expression of dissatisfaction
with this episcopal blindness. However, the high deviance from the reporting
requirement and the often formalized and interpretative-immunizing responses of
the bishops should not lead us to underestimate the effect of the encyclical»
(pág. 87). Veja-se: The Reception of the Encyclical Pascendi in Germany Claus Arnold (Johannes Gutenberg-Universität Mainz,
Deutschland), in: The
Reception and Application of the Encyclical Pascendi, Studi de Storia 3, coordenado
por Claus Arnold e Giovanni Vian, Edizioni Ca’ Foscari, 2017, pág. 75 ss.
– https://edizionicafoscari.unive.it/media/pdf/books/978-88-6969-131-7/978-88-6969-131-7_3wnVeKK.pdf.
[15] «Para Schmaus, a fé da Igreja comunicava-se
com conceitos definitivos e estáticos que definem verdades perenes. Para
Söhngen, a fé era um mistério e comunicava-se numa história. Naquela época,
falava-se muito da história da salvação. Havia um fator dinâmico que também
garantia uma abertura e um tomar em consideração as novas questões».
Entrevista com Alfred Läpple de Gianni Valente e Pierluca Azzaro, Quel nuovo
inizio che fiorì tra le macerie, in 30 giorni, 01/02, 2006 – www.30giorni.it/articoli_id_10082_l1.htm.
[16] Sandro Magister, Il
Credo di Paolo VI. Chi lo scrisse e perché, 6 de Junho de 2008 – http://chiesa.espresso.repubblica.it/articolo/204969.html.
[17] Sandro
Magister observa: «Nos anos cinquenta, Maritain esteve perto de ser
condenado pelo Santo Ofício pelo seu pensamento filosófico, suspeito de “naturalismo
integral”. A condenação também não foi desencadeada porque assumiu a sua defesa
Giovanni Battista Montini, o futuro Paulo VI, então Substituto da Secretaria de
Estado, ligado por uma longa amizade com o pensador francês». Ibidem.
[18] Gianni Valente, Paolo
VI, Maritain e la fede degli apostoli, in 30 giorni, 04, 2008 – www.30giorni.it/articoli_id_17689_l1.htm.
[19] Assim
sugeriu, a 6 de Abril de 1968, o dominicano Benoît Duroux, então colaborador do
Secretário do ex-Santo Ofício, Mons. Paul Philippe. Ibidem.
[20] Ibidem.
[21] Paulo VI, Homilia na solene concelebração em conclusão do
Ano da Fé no centenário do martírio dos Apóstolos Pedro e Paulo, 30 de Junho de
1968 – http://www.vatican.va/content/paul-vi/it/motu_proprio/documents/hf_p-vi_motu-proprio_19680630_credo.html.
[22] «Nós
temos consciência da inquietação que agita alguns ambientes modernos em relação
à fé. Não escapam da influência de um mundo em profunda transformação, no qual
tantas certezas são desafiadas ou questionadas. Vemos também católicos que se
deixam levar por uma espécie de paixão pelas mudanças e pelas novidades».
Ibidem.
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