«Os
meus companheiros viram a luz, mas não ouviram a voz de quem me falava. E
prossegui: “Que hei-de fazer, Senhor?”. O Senhor respondeu-me: “Ergue-te, vai a
Damasco e lá te dirão o que se determinou que fizesses”» (At 22, 9-10).
Que, em 1600, Monsenhor Tiberio Cerasi, poderoso tesoureiro do Papa Clemente
VIII, tenha contratado Caravaggio para lhe confiar os painéis laterais da
capela, que comprou em Santa Maria del Popolo, é sabido. Que lhe tenha solicitado,
como tema, a celebração dos dois co-titulares do espaço sagrado – São Pedro e
São Paulo – também. Que os seus herdeiros, os responsáveis do Hospital de Santa
Maria della Consolazione, tenham, depois, recusado as gravuras de Merisi, por
questões de decoro, apenas o sustenta Giovanni Baglione, biógrafo do artista e
seu detrator, invejoso do indiscutível talento do lombardo que, por sua vez, em
prol da verdade, tornara o seu colega um alvo fácil do seu escárnio.
É certo que, hoje, no local, de Merisi encontram-se e admiram-se duas telas
diferentes (não gravuras, conforme o contrato inicial) do mesmo tema, pintadas
e entregues posteriormente. E que, portanto, o pintor deve ter repensado sobre
isso. A primeira Conversão de Saulo, actualmente preservada pela família
Odescalchi, no seu elegante palácio romano, é, estilisticamente, considerada
ainda “maneirista” em comparação com a subsequente que, como observámos numa
outra ocasião (veja-se aqui), já é um exemplar perfeito da linguagem
revolucionária de Caravaggio.
A pintura de Odescalchi, em madeira de cipreste, é devedora, de alguma forma,
ao afresco homólogo que o outro Michelangelo, o Buonarroti, pintou cinquenta
anos antes na Capela Paulina. Seguindo a mesma tradição composicional, Merisi
cita a postura e a fisionomia do Santo caído por terra, ao invés do irromper
físico do divino.
O estilo é, no entanto, inconfundivelmente seu. Assim como é a luz, que investe
plenamente em Paulo, obrigando-o a proteger os olhos com as duas mãos, pôs a nu o seu corpo e – sabemo-lo – a alma. Ao lado, consuma-se também o drama do palafreneiro
que, armado de escudo e lança, defende de um potencial inimigo, a ele
invisível, a si mesmo e o cavaleiro desestribado do belíssimo animal
desorientado.
Tudo acontece num instante, sobre o fundo de um céu bruno que, iluminando ao
longe, aparece quase como um sinal premonitório. Na tumultuosa agitação daquele
momento, Jesus faz-se próximo de Paulo e, com um impulso imprevisto, dificilmente
detido pelo anjo que O acompanha, vem em seu auxílio, estendendo-lhe as mãos
com uma naturalidade tão espontânea quanto humana. Caravaggio pretende
sublinhar, deliberadamente, a consistência do seu encontro, tão tangível que se
parte um galho do choupo. Tão real a ponto de mudar, para sempre, a vida e o
destino do Apóstolo dos Gentios.
Margherita del Castillo
Através de La Nuova Bussola Quotidiana
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