Um dos
primeiros padres do Oratório, companheiro de São Filipe Néri, sobre o tema da
graça costumava preferir aqueles escritores que atribuíam mais à soberania de
Deus do que à livre vontade humana. Com isso, este santo sacerdote do Oratório
não só demonstrou ser um discípulo fiel de São Tomás, mas foi capaz de transfundir
esta posição teológica na sua vida espiritual. Por isso, escreve o padre Faber,
«adquirira o hábito de tomar cada coisa do lado de Deus e de considerar cada
coisa do ponto de vista de Deus», porque aqueles que amam a Deus alinham-se
sempre ao Seu lado.
Assim, explica o padre Faber, se um homem bom é oprimido por uma perseguição
injusta ou por uma cruel calúnia, o primeiro pensamento daqueles que,
realmente, amam a Deus não deveria ser ao compadecimento – embora de dever – do
infeliz, mas «à chaga infligida à honra de Deus com a perseguição do Seu
servo e o pecado quase certamente cometido pelo perseguidor». Isto vale em
todas as circunstâncias dolorosas, como os pecados públicos, as calamidades
naturais, os desastres políticos; mas também nos acontecimentos positivos, como
os sucessos da Igreja, a libertação das almas do purgatório, a conversão dos
pecadores: o primeiro instinto deveria ser sempre para a glória de Deus e não
para a vantagem ou o infortúnio do próximo.
Colocar-se do lado de Deus tem sido a prática de muitos Santos, embora em diversos
graus. «Consideradas em si mesmas – escreveu S. Francisco de Sales –, as
penas não podem ser, certamente, amadas, mas consideradas na sua origem, isto
é, na Providência e na vontade divina que as ordenaram, são infinitamente
amáveis. Veja-se a vara de Moisés: no chão está uma aterrorizante serpente; nas
mãos de Moisés um bastão de maravilhas. Assim, as tribulações, consideradas em
si mesmas, são horríveis, mas, consideradas na Vontade de Deus, são amor e
deleite!». Afirma Santo Agostinho: Estás consolado? Reconhece o Pai que te
acaricia. Estás atribulado? Reconhece o Pai que te corrige». Um religioso
da Companhia de Jesus – relata Santo Afonso de Ligório –, quando Deus o
visitava com alguma enfermidade, dor ou perseguição, perguntava-se sempre: «Diz-me,
enfermidade – ou dor ou tribulação –, quem te manda? Manda-te Deus?
Então, sê bem-vinda, bem-vinda!», e assim estava sempre em paz. O padre Pedro
Faber, um dos primeiros jesuítas, dizia que não bastava que as pessoas se
humilhassem sob a mão poderosa de Deus nas calamidades públicas, mas que era
necessário dar-Lhe sinceras graças pela fome, pelas guerras, pelas inundações,
pelas pestes e por todos os outros flagelos celestes; afligia-se, profundamente
angustiado, ao ver que, em tais acontecimentos, não se reconhecia, abertamente,
a misericordiosa intenção de Deus. A alma verdadeiramente grata a Deus – disse Santo
Antíoco – reconhece-se quando Lhe agradece nas calamidades.
Esta atitude da alma, esta prática excelentíssima, funda-se na certeza de que a
Providência de Deus tudo rege e governa segundo os misteriosos planos da Sua bondade
infinita, que nunca permite o mal, excepto para dele tirar um bem maior. É, de
facto, a perfeição do abandono à divina Providência, porque consiste não só no
fazer, de modo perfeito, a Vontade de Deus, mas no desejá-la, colocando-se
sempre do Seu lado.
O padre Garrigou-Lagrange, que dedicou um admirável estudo à Providência, antecipa
as acusações de quietismo que poderiam ser feitas, pelos menos sábios, à doutrina
do abandono nas mãos da Providência, distinguindo – segundo a tradição – a
Vontade de Deus significada daquela de beneplácito. A primeira,
representada, sobretudo, pelos mandamentos e pelas proibições, é o campo da
obediência; a segunda, que consiste em tudo o que Deus permite fora dos nossos
deveres e da nossa vontade, é o campo do abandono confiante. Por isso, somente
depois de termos perfeitamente cumprido a vontade de Deus significada podemos
e devemos abandonar-nos à Sua vontade de beneplácito. Colocar-se do lado
de Deus parece ser a última perfeição do abandono confiante.
Talvez o exemplo mais eloquente desta prática o encontremos na vida de Tauler, célebre
dominicano que viveu no século XIV, que – não obstante a sua alta teologia e o seu
agudíssimo intelecto – rezou a Deus, por oito longos anos, para que lhe
mostrasse o caminho de verdade. Um dia, quando esse desejo era particularmente
intenso, ouviu uma voz do céu que lhe disse: «Sai e sobe os degraus da
igreja: encontrarás um homem que te ensinará o caminho da verdade». Tauler
saiu e encontrou, na soleira da igreja, um mendigo com os pés feridos, nus e
enlameados, coberto com roupas imundas e muito pobres. Cumprimentou-o, dizendo:
«Que Deus te dê um bom dia». O mendigo respondeu-lhe: «Não me lembro
de ter tido um dia mau». «Que Deus te faça feliz», continuou Tauler.
E o pobre: «Nunca fui infeliz». «Deus te abençoe – retomou o
teólogo dominicano –, mas fala com mais clareza porque não entendo o que dizes».
«Fá-lo-ei de boa vontade», disse o pobre. «Desejaste-me um bom
dia e eu respondi-te que não me lembro de ter um dia mau; na verdade, quando a
fome me atormenta, louvo a Deus; se sinto frio, se graniza, neva ou chove, se o
tempo está calmo ou tempestuoso, louvo a Deus; quando estou na indigência,
louvo a Deus; quando recebo injúrias e desprezo, louvo, igualmente, a Deus. Por
isso, nunca tive um dia mau. Depois, desejaste-me uma vida feliz e respondi-te que
nunca fui infeliz, e isso é verdade, porque sei viver com Deus e tenho a certeza
de que tudo o que faz é óptimo. Por isso, tudo o que receba de Deus, ou que Ele
permita que receba de outros, prosperidade ou adversidade, doçura ou amargura,
considero-o como uma verdadeira fortuna e aceito-o, com alegria, das Suas mãos.
De resto, estou bem determinado a aderir apenas à Vontade de Deus e fundi, de
tal modo, a minha vontade com a Sua que desejo tudo o que Ele deseja. Consequentemente,
nunca fui infeliz». «Mas o que dizes; e se Deus quisesse atirar-te para
o fundo do abismo?». «Atirar-me para o fundo do abismo? Se Deus quisesse
chegar a tal, tenho dois braços com os quais O abraçaria fortemente: com o
braço esquerdo, que é a verdadeira humildade, pegaria na Sua santíssima humanidade
e agarrar-me-ia a ela; com o meu braço direito, que é o amor, pegaria na Sua
divindade e apertá-la-ia bem; então, se quisesse precipitar-me no inferno, teria
de vir comigo, e eu preferia estar no inferno com Ele do que no céu sem Ele».
O grande dominicano compreendeu, pois, que a verdadeira humildade, unida ao
mais filial abandono, é a principal via de acesso a Deus. E continuou a
perguntar: «De onde vens?». «Venho de Deus». «Onde O
encontraste?». «Onde deixei as criaturas». «Onde resides?». «Nos
corações puros e nos homens de boa vontade». «Quem és, afinal?». «Sou
um rei». «Onde é o teu reino?». «Na minha alma, porque aprendi a
dominar os meus sentidos externos e internos, de modo que todos os afectos e
todas as forças da alma me estejam submetidas; e esta realeza – ninguém
pode duvidar – vale mais do que todas as da terra». «O que fez te fez
atingir esta sublime perfeição?». «O silêncio, as minhas profundas
meditações e a união com Deus. Não pude ter repouso em algo que não é Ele; e,
agora, encontrei o meu Deus e n’Ele possuo um descanso perfeito e uma paz inalterável».
Tauler ficou admirado com tanta divina sabedoria escondida em tão humilde
aparência e entendeu que a mais alta perfeição, a verdadeira realeza do homem,
consiste em colocar-se sempre amorosamente do lado de Deus.
Nos difíceis tempos que vivemos, em que os direitos de Deus são
sistematicamente pisoteados a favor do homem, colocar-se do lado de Deus
representa uma prática de suprema sabedoria. «Como criaturas – escreveu
o padre Faber –, encontramo-nos no nosso verdadeiro lugar colocando-nos do
lado de Deus, defendendo os Seus interesses, protegendo a Sua majestade,
promovendo a Sua glória. De tal modo comprometidos, encontramos a felicidade na
mais abjecta condição social e paz na mais triste desventura».
Cristiana de Magistris
Através de Corrispondenza Romana
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