A
história é complexa, às vezes obscura, e apenas a Providência Divina nos
revelará, um dia, o seu enredo. O destino da Casa de Saboia faz parte desses
misteriosos desígnios e somos gratos a Cristina Siccardi por nos mostrar alguns
aspectos no seu último livro dedicado à Casa di Savoia e la Chiesa. Una
grande millenaria storia europea[1]
(Sugarco, Milano 2020, pp. 400), com documentos inéditos e uma intervenção do
Rei Simeão II da Bulgária.
A Casa de Saboia é, de facto, a dinastia que, com os seus inúmeros membros que
morreram em fama de santidade, as suas igrejas, as suas abadias, mais ilustrou
a Igreja ao longo dos séculos, mas é também a Casa reinante que, tendo atingido
o auge do seu poder, infligiu à Igreja uma das mais dolorosas feridas da sua
história. A tomada de Roma, a 20 de Setembro de 1870, apagou da memória as
raízes cristãs de uma Casa cuja relação milenar com a Igreja Católica foi
reconstruída por Cristina Siccardi.
Nos vinte e oito capítulos de um livro baseado em documentos de primeira mão, alternam-se
momentos cruciais da história que vão das Cruzadas à Batalha de Lepanto, da
Revolução Francesa ao Risorgimento, com personagens mais ou menos conhecidos da
Casa de Saboia, como Humberto, “o mãos-brancas”, Bonifácio, Arcebispo da Cantuária,
Leonor, Rainha de Inglaterra, Joana, Imperatriz de Bizâncio, até aos últimos soberanos
do ramo dos Carignano, artífices da “Revolução Italiana”.
Um dos capítulos mais interessantes é aquele dedicado a Le origini sabaude
di Fatima[2]
(pp. 109-115). O Rei Afonso de Portugal (1109-1185), que se casou com Mafalda
de Saboia, irmã do Beato Humberto III, depois de uma vitória sobre os
muçulmanos, concedeu a Gonçalo, um dos seus valentes comandantes, o privilégio
de escolher, como esposa, a mais bela entre as prisioneiras muçulmanas. A
escolha recaiu sobre a jovem Fátima que, graças às atenções da Rainha Mafalda,
se converteu à fé católica, com o nome de Oureana, mas faleceu pouco depois do matrimónio.
Gonçalo decidiu retirar-se para uma vida de oração no mosteiro cisterciense de
Alcobaça e fez com que o corpo da sua esposa fosse transferido para uma
localidade vizinha, que dela tomou o nome de Fátima. A Rainha Mafalda mandou
construir, em Fátima, uma igrejinha e quis ser sepultada ao lado da jovem que
trouxe para a fé cristã. Dois séculos depois, o Príncipe Filipe de Saboia-Acaja,
milagrosamente salvo da morte pelo seu antepassado Humberto III, veio em
peregrinação à Abadia de Alcobaça e a Fátima. Uma das suas filhas era monja,
com o nome de irmã Filippina, no mosteiro dominicano de Santa Maria Madalena de
Alba (Cuneo), fundado pela Beata Margarida de Saboia. A irmã Filippina morreu, a
16 de Outubro de 1454, depois de receber muitas revelações privadas. Nas
memórias do convento há um documento em que se diz que a vidente falou de «uma
igreja, numa localidade chamada Fátima, edificada por uma antepassada da nossa santa
fundadora, Margarida de Saboia, e que uma estátua da Santíssima Virgem falou dos
acontecimentos futuros muito graves porque Satanás fará uma guerra terrível,
mas perderá porque a Santíssima Virgem, Mãe de Deus e do Santíssimo Rosário de
Fátima, “mais forte do que qualquer exército em ordem de batalha”, o vencerá
para sempre».
Em 1917, Nossa Senhora aparece em Fátima e, no lugar da pequena igreja, mandada
construir pela Rainha Mafalda, foi construído um grande santuário. Existe, pois,
uma misteriosa ligação entre a Casa de Saboia e o lugar onde, nove séculos
depois, aparece Nossa Senhora. A lápide que indicava a sepultura de
Oureana-Fátima e da sua mãe espiritual, a Rainha Mafalda de Saboia, é
conservada no subsolo do santuário. Portugal também foi o local do exílio do
primeiro artífice do Risorgimento italiano, o Rei da Sardenha Carlos Alberto de
Saboia-Carignano, e do último soberano da Casa de Saboia, o Rei Humberto I.
O capítulo conclusivo do livro é dedicado, precisamente, a L’Eredità di
Umberto II[3]:
uma figura trágica e melancólica que pagou e redimiu as culpas dos seus ancestrais
directos.
A 2 de Junho de 1946, realizou-se, em Itália, um referendo que atribuiu a
vitória à República, de forma igualmente fraudulenta aos plebiscitos de 1859 que
tinham atribuído a vitória ao Piemonte saboiano. Humberto II deixou Itália, num
avião que descolou, de Ciampino, a 13 de Junho de 1946, mas sem abdicar, nunca renunciando
aos seus direitos soberanos que continuou a exercer discretamente no exílio. A
sua partida, segundo uma confidência do marquês Fausto Solaro del Borgo
recolhida por Cristina Siccardi, também se deveu a um pedido do Papa Pio XII,
que o recebeu secretamente, no Vaticano, à meia-noite de 10 de Junho. «Ficaram
duas horas no interior e o regresso ao Quirinale decorreu no silêncio mais absoluto.
Naquela noite, o Papa, para evitar uma “carnificina”, pediu ao Rei que deixasse
Itália» (p. 363).
A 25 de Março de 1983, dia em que se abria o Jubileu extraordinário da
Redenção, proclamado por João Paulo II, chegou ao Papa a notícia de que Humberto
II, falecido uma semana antes, «havia disposto, entre as suas últimas vontades,
que o Santo Sudário, conservado na Catedral de Turim, fosse oferecido, em plena
propriedade, ao Sumo Pontífice». O Pontífice comoveu-se com aquele gesto,
que confiava definitivamente à Igreja uma das mais distintas relíquias da
Paixão, e decidiu que o Santo Sudário ficasse na Catedral de Turim, nomeando seu
guardião o arcebispo da cidade.
Humberto II não deixou nenhum testamento, nem público nem privado, mas apenas
um testamento espiritual, encerrado na vontade de doar à Igreja o bem mais
importante da Casa de Saboia. «O seu – comenta Cristina Siccardi – não
foi um gesto mediático, como estava na sua índole, na linha da tradição
saboiana, todavia, historicamente, demonstrou que o Rei no exílio terminava a própria
existência com uma extraordinária homenagem à Santa Romana Igreja» (p. 362).
Esse gesto foi o epílogo da história de uma dinastia católica.
Roberto de Mattei
Através de Corrispondenza Romana
[1] Trad.: Casa
de Saboia e a Igreja. Uma grande história europeia milenar.
[2] Trad.: As
origens saboianas de Fátima.
[3] Trad.: A
Herança de Humberto II.
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