Nos
últimos dias, a imprensa deu destaque a um escrito do Card. Pell que, num livro
de memórias em que também percorre os seus recentes acontecimentos judiciais
que culminaram com a absolvição total, reflectiu sobre algumas anomalias que o
caso Ratzinger trouxe à tona, já que, ao contrário de Celestino V, continua a
usar o hábito branco, a assinar como “Bento XVI, Papa emeritus”, a viver «no
recinto de São Pedro», a ser chamado de «Santidade e de Santo Padre»...
Para o ex-Prefeito da Secretaria para a Economia, o emérito deveria
despir-se do hábito branco, ser excluído da assembleia cardinalícia e “não
ensinar”. Em vez disso, Bento XVI, nestes sete anos e meio, quebrou o silêncio
em muitas ocasiões. Uma das mais sensacionais quando, por exemplo, reiterou o seu
firme “não” à abolição do celibato sacerdotal. Também nesta ocasião se
enfatizava a necessidade de “novas regras para o papado emérito”. A questão é
que o “papado emérito” não é discutido; mas quer-se silenciá-lo... Até porque,
no caso de Ratzinger, as suas intervenções nem sempre foram em uníssono com o seu
sucessor. E é esta a falha intolerável da actual Cúria.
A figura do Papa emérito
Joseph Ratzinger criou a figura do Papa emérito, mas a novidade introduzida
representa uma anomalia por se tratar de um inédito, nem canonicamente nem
teologicamente normatizado, o que, certamente, muda a fisionomia do papado e aparece
coerente com a sua inspiração conciliar-modernista que pode tê-lo levado a ver
o papado como uma função. Demonstrá-lo-ia o uso, na abdicação, da fórmula ingravescente
aetate, cunhada, por Paulo VI, para a resignação dos bispos... sem prejuízo
do surgimento de outros elementos que, neste momento, não nos é dado saber.
O próprio Bento XVI, há algum tempo, respondeu, sem responder, ao motivo da sua
escolha, numa carta dirigida ao Cardeal Walter Brandmüller, e às suas objecções
e solicitações sobre o pontificado emérito, a fim de evitar a “confusão”
e tornar claro erga omnes que o Papa é um e é Francisco.
Um outro aspecto interessante surgiu por ocasião da declaração de Mons.
Gänswein, sobre a instituição do “Papa emérito”, na qual – como “Fim do velho,
início do novo” – surge o ministério alargado com um membro activo e um contemplativo.
Mesmo naquela circunstância, não faltaram as minhas observações.
Aproveito para relembrar o que já observei sobre as cartas de Bento XVI,
que acabaram por ser duas:
Indícios e perplexidades
As cartas de Ratzinger revelam muitas mais coisas do que o conteúdo pobre e
essencial. O dado, para mim, mais relevante é que Bento XVI não responde,
substancialmente, às questões colocadas pelo Cardeal Brandmüller em termos
doutrinários. Nas duas cartas, expressou-se brevemente com a adicional defesa da
sua decisão que confronta com o plano de emergência do Papa Pio XII (1876-1958)
de renunciar ao papado para evitar ser “preso pelos nazis”.
Baseando-nos neste exemplo, poderíamos perguntar-nos por quem e em que termos
Bento se sentiu ameaçado. Recordando também as suas palavras durante a Missa de
inauguração do pontificado: «Rezai por mim para que não fuja, por medo,
diante dos lobos». E vimos que ele estava, de facto, rodeado por lobos,
internos e externos (automaticamente desaparecidos em relação ao seu sucessor).
O referido jornal alemão Bild relata a declaração de um vaticanista, Armin
Schwibachche, segundo o qual, por “lobo”», Bento XVI se referia, provavelmente,
à rede de altos dignitários eclesiásticos que, no Vaticano, criaram um sistema
e abusos de poder, e aos quais se sentia incapaz de fazer frente. Até ao
momento, temos apenas uma enxurrada de indícios, mesmo bastante pesados, mas, sobretudo
na nossa posição, não podemos tirar quaisquer conclusões.
Indícios do Vaticano II
Todavia, voltando ao exemplo de Pio XII, que preparou uma carta de demissão, a ser
efectivada caso os alemães chegassem até ele para o prender, não esqueçamos o
propósito explicado aos seus colaboradores mais próximos: «Quando os alemães
cruzarem aquela linha, não encontrarão mais o Papa, mas o Cardeal Pacelli».
Mas para Bento XVI não foi esse o caso. Nunca pensou – e confirma-o numa das suas
cartas – que poderia voltar a ser “o Cardeal Ratzinger”. Estava e continua
firmemente convencido de que há algo na sua eleição como Papa que permanece “para
sempre”. Só que, apesar de ser questionado por Brandmüller sobre a necessidade
de motivações teológicas e canónicas, não fornece nenhuma. Mas, na realidade,
se levarmos em consideração a sua mens segundovaticanista, ele não sente
necessidade disso. De facto, encontramos a solução do enigma na reforma
conciliar que transformou a percepção que a Igreja tem de si mesma e a “pastoral”
que dela se segue no sentido sacramental e carismático, desinstitucionalizado,
com a passagem de uma Igreja vista como hierárquica e como sociedade perfeita a
uma Igreja vista como comunhão de irmãos; o que opõe a caridade ao direito, a
comunhão à hierarquia, o poder de ordem ao poder de jurisdição. Com os
organismos Sinodais que transformam a Igreja Una num corpo policêntrico. A recente
Episcopalis communio, sobre a qual deveremos aprofundar, mas cujos pródromos
no actual pontificado já apreendemos aqui, é o seu ápice.
Estamos no coração da definição teológica do primado papal. Se, com Tomás (Summa
Th., 2-2ae, q. 39, a. 3), temos presente a distinção entre potestas
ordinis e potestas iurisdictionis, reconhecemos que a primeira, que
deriva do sacramento da ordem, tem um carácter indelével e não está sujeita a
renúncia em virtude do character indelebilis da sagrada ordem. A segunda,
instituída, por Cristo, de iure divino, tem natureza jurídica e, não
tendo impresso o carácter indelével da sagrada ordem, pode falhar em caso de
heresia, renúncia ou deposição.
O primado do Papa não é sacramental, mas jurídico. Em vez disso, se partirmos
do pressuposto de que a essência do Papado está no poder sacramental da ordem e
não no poder supremo de jurisdição, o Pontífice nunca poderia renunciar (o “para
sempre” apoiado por Bento XVI); se o fizesse, perderia, com a renúncia, apenas
o exercício do supremo poder, mas não o próprio poder, que seria indelével como
a ordenação sacramental da qual brota. O neomagistério fluído e transitório não
define nem fixa as normas, manifesta-se através da práxis.
Maria Guarini
Através de Chiesa e post concilio
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