É com grande júbilo que, no dia em que a Santa Igreja celebra a festa da Imaculada Conceição da Virgem Santa Maria, o portal católico Dies
Iræ publica, em exclusivo, uma entrevista concedida por Sua Eminência o Cardeal
Raymond Leo Burke.
1. Muito obrigado,
Eminência, por tão cordialmente ter acedido à realização desta entrevista em
exclusivo para o portal católico português Dies Iræ. Em reiteradas ocasiões,
pudemos ouvir de Vossa Eminência uma belíssima descrição de como era a vida
familiar e eclesial na Vossa povoação natal nos Estados Unidos da América. E
como lamenta, justamente, o desaparecimento desse ambiente propício à expansão
da Fé e à santidade da vida familiar. Muitos historiadores chamam a este
período pré-conciliar de Igreja Constantiniana. Vossa Eminência vislumbra, tal
como estão as coisas hoje, um retorno, ou a restauração, desse período? Como se
poderá fazê-lo se alguns documentos do II Concílio do Vaticano representam uma
ruptura com esse passado da Igreja?
A vida cristã é
sempre um regresso às raízes, à Sagrada Tradição pela qual o Senhor nos
transmite, ininterruptamente, a Sua vida na Igreja. Infelizmente, na época do
Concílio Vaticano II e ainda mais depois do Concílio, havia um forte sentimento
de que tudo do passado na Igreja devia ser abandonado como uma traição da vida
da Igreja primitiva, que foi idealizada como uma comunidade plenamente
desenvolvida e marcada pela liberdade, alegria e amor, quando, de facto, a
Igreja, desde os seus primeiros dias, teve que enfrentar a pecaminosidade do
homem, que sempre luta contra Cristo e a Sua doutrina e disciplina.
A ideia do chamado “espírito do Concílio” era criar uma nova Igreja – do ponto
de vista doutrinal, litúrgico e espiritual, e disciplinar – segundo uma
filosofia e uma teologia que já existiam nas décadas anteriores ao Concílio e
foram repudiadas pelo Magistério.
O Concílio foi visto como a ocasião para que este pensamento, profundamente
equivocado, se estabelecesse na Igreja com a bênção da hierarquia. O que
aconteceu foi um colapso assustador na catequese e em todas as formas de
instrução na fé e na formação dos sacerdotes e dos religiosos. Além disso, o
espírito da Sagrada Liturgia foi atacado por um antropocentrismo que destruía a
visibilidade da realidade que é Cristo que desce da direita do Pai, onde se
sentou na glória, para nos encontrar para os sagrados ritos. Havia um desprezo
geral pela disciplina da Igreja, especialmente pelo ensinamento moral e pelo Direito Canónico, que causava imenso dano aos indivíduos cristãos e às
famílias.
Os anos anteriores ao Concílio não foram perfeitos, mas havia um respeito
fundamental pela Sagrada Tradição que se via no Catecismo de Baltimore, por
exemplo, que nós, como crianças, memorizámos. Além disso, a formação dos
sacerdotes e dos religiosos era muito realista, visando ajudar os seminaristas
e os noviços a ver a objectividade da vocação divina e as exigências,
especialmente em termos de purificação dos modos de pensar e de agir mundanos
ou seculares, de uma verdadeira resposta vocacional vista, correctamente, como
o caminho de toda a vida. Com razão, fomos instruídos, desde crianças, que o
discernimento da vocação e a resposta à vocação é o caminho para a vida eterna.
A Sagrada Liturgia, mesmo nas partes mais remotas da América, era celebrada
segundo o rito plurissecular – mais ou menos, da época do Papa São Gregório
Magno – na língua universal da Igreja, que é o latim. Mesmo nos lugares pobres,
os fiéis fizeram grandes sacrifícios para ter as coisas o mais belas possível
para as suas igrejas – retábulos esculpidos em madeira ou mármore da Europa,
imagens, pinturas, cálices e outros vasos sagrados de ouro, sagrados paramentos
e linhos – que, tristemente, depois do Concílio foram frequentemente destruídas
em nome do “espírito do Concílio”.
Hoje, muitos, em particular os jovens que viveram a catástrofe provocada pelo
“espírito do Concílio”, procuram a Sagrada Tradição. E o modo de procurá-la é
retornar a uma catequese, a uma vida litúrgica e a uma disciplina fiéis às
verdades Apostólicas. Não devemos ter uma atitude soberba e condescendente para
com o passado, mas, pelo contrário, devemos valorizá-lo e cultivá-lo no
presente, vendo no passado a incessante actividade do Espírito Santo
transmitindo-nos, em cada tempo e em cada lugar, a vida de Cristo
orientando-nos para o Seu Sagrado Coração, do Qual emana, incomensuravelmente e
incessantemente nos nossos corações, a graça de uma vida santa, a graça que nos
conduz ao verdadeiro destino da nossa vida quotidiana: a vida eterna, com os
Anjos e todos os Santos, na presença de Deus – Pai, Filho e Espírito Santo.
No que diz respeito ao ensinamento do Concílio Vaticano II, não há dúvida de
que o Concílio foi legitimamente convocado e que transmite a fé e a práxis da
fé na fidelidade à Sagrada Tradição, mas segundo uma óptica diferente dos
Concílios Ecuménicos precedentes. O Concílio apresentou-se como “pastoral”,
insistindo que não pretendia definir a doutrina sobre a fé e sobre os bons
costumes. Mas a boa pastoral está sempre profundamente enraizada na doutrina. A
falsa dicotomia entre a pastoral e a doutrina continua, também hoje, a causar
muita confusão e graves erros.
Algumas coisas nos documentos, devido à influência de um falso optimismo e de
certos teólogos não bem radicados na filosofia perene e na sã teologia, devem
ser esclarecidas e, por vezes, corrigidas. Vimos isso, por exemplo, na
Declaração Dominus Iesus, da Congregação para a Doutrina da Fé, que
corrigiu certas ideias erróneas sobre a eclesiologia e, especialmente, sobre a
relação da Igreja Católica com as outras religiões e com as outras igrejas e
comunidades eclesiais. O Papa São João Paulo II, pelo seu extenso ensinamento,
deu a correcta leitura ao Concílio Vaticano II, por exemplo, na sua Encíclica Veritatis
Splendor, que corrigia ensinamentos morais, fundamentalmente prejudiciais,
que entraram na vida da Igreja.
Sobre o Concílio Vaticano II, o ponto fundamental a lembrar é que a única forma
de compreender o seu ensinamento é por referência à ininterrupta transmissão da
fé e à práxis da fé ao longo dos séculos. Nesta transmissão há um
desenvolvimento profundo e harmonioso, mas nunca confusão e ruptura.
2. Nas cerimónias litúrgicas – e não só –, quando Vossa Eminência ainda era
Arcebispo de Saint Louis, procurou sempre estimular nos fiéis o amor de Deus
através da beleza intrínseca dos actos litúrgicos. E continua a fazê-lo, agora
como Cardeal, nas ordenações presbiterais e noutras cerimónias a que preside.
Como responderia à objecção de fundo modernista de que esta pompa toda de nada
serve, pois não tem o “cheiro a ovelha” da Igreja actual? Qual é o sentido
profundo da beleza litúrgica e como é que ela é um poderoso elemento para nos
elevar até à visão beatífica?
Na Sagrada Liturgia, o céu encontra-se com a terra; Jesus, ressuscitado e
elevado ao Céu, desce até nós para nos encontrar e para nos dar a Sua vida.
Este é o Mistério da Fé. Logo, na celebração da Sagrada Liturgia deve-se
respeitar a integridade dos ritos tal como nos foram transmitidos ao longo dos
séculos. Este respeito é um acto de fé de que a Sagrada Liturgia não é uma
actividade humana, uma nossa invenção, mas é uma acção divina, um dom de Deus,
o mais maravilhoso dom que Deus nos deu. O sacerdote deve-se dar totalmente à
acção de Cristo, que se manifesta através da beleza transmitida nos detalhes
dos ritos.
Mesmo os pobres, e talvez sobretudo os pobres, apreciam muito a beleza da
Sagrada Liturgia. A sua dignidade como cristãos deve ser respeitada nas
celebrações litúrgicas, celebradas da forma mais bela possível como se fossem
celebradas para os mais importantes personagens. Assim, para a Sagrada
Liturgia, os pobres, que sofrem tantas privações, experimentam quão amados são
por Deus. São Francisco de Assis, o Pobrezinho que abraçava a pobreza
evangélica, insistia que só as coisas mais belas e dignas fossem utilizadas
para a Sagrada Liturgia. Eu cresci numa quinta e conheço o “cheiro das vacas”,
mas os meus pais insistiam que eu e os meus irmãos e irmãs estivéssemos bem
lavados para não levarmos aquele cheiro para a igreja, pois poderia facilmente
tornar-se uma fonte de distracção do culto divino. Tínhamos roupas especiais
reservadas para a Santa Missa. Ficou claro para nós que o culto divino, pela
sua própria natureza, requer muitos outros sinais de respeito da nossa parte.
3. No passado mês de Maio, mais de quinhentos católicos portugueses, entre
sacerdotes e fiéis leigos, dirigiram um apelo à Conferência Episcopal
Portuguesa pedindo que os fiéis pudessem receber a Sagrada Comunhão na boca, ao
contrário daquilo que tinha sido decretado, a 8 de Maio, por um documento dos bispos portugueses. Para além de nunca ter sido dada uma resposta ao apelo, que
também foi enviado para a Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos
Sacramentos, o Bispo de Leiria-Fátima, numa entrevista ao portal dos Jesuítas,
ridicularizou o número de subscritores e, desde então, a perseguição a quem
pretende comungar na boca tem aumentado. No Santuário de Fátima, por exemplo,
um sacerdote recusou a comunhão a uma fiel que se ajoelhou para comungar. Como
é que Vossa Eminência observa esta situação problemática?
Um bispo, efectivamente, não tem poder para negar a recepção da Sagrada
Comunhão na língua. A disciplina relevante encontra-se no n. 161 da Instrução
Geral do Missal Romano (26 de Março de 1970) e no n. 92 da Instrução Redemptionis
Sacramentum, da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos
Sacramentos (25 de Março de 2004). A citada Instrução afirma: «Todo o fiel
tem sempre direito a escolher se deseja receber a Sagrada Comunhão na boca ou
se, o que vai comungar, quer receber na mão o Sacramento. Nos lugares aonde a
Conferência dos Bispos o haja permitido, com a confirmação da Sé Apostólica,
deve-se administrar a sagrada hóstia». Deve-se notar que o direito de
receber a Sagrada Comunhão na língua é universal e perpétuo, enquanto a escolha
de receber a Sagrada Comunhão na mão depende da autorização da Conferência dos
Bispos (com a devida intervenção da Santa Sé).
Não há nenhuma provisão para a recepção da Sagrada Comunhão na mão no Missal
Romano de 1962 e, portanto, quando o Rito da Missa é celebrado segundo o Usus
Antiquior, ou Forma Extraordinária, a Sagrada Comunhão recebe-se apenas na
língua. O n. 28 da Instrução Universae Ecclesiae, da Pontifícia Comissão
“Ecclesia Dei” (30 de Abril de 2011), declara: «Outrossim, por força do seu
carácter de lei especial, no seu próprio âmbito, o Motu Proprio Summorum
Pontificum derroga os textos legislativos inerentes aos sagrados Ritos
promulgados a partir de 1962 e incompatíveis com as rubricas dos livros
litúrgicos em vigor em 1962». O Papa São Paulo VI autorizou a distribuição
da Sagrada Comunhão na mão, a 29 de Maio de 1969, com a Instrução Memoriale
Domini, da Sagrada Congregação para o Culto Divino. O Motu Proprio Summorum
Pontificum derroga, claramente, a legislação na Memoriale Domini.
É instrutivo notar que a Memoriale Domini afirma, de modo claro, a
universal e perpétua prática de receber a Sagrada Comunhão na língua: «A
partir destas respostas, fica claro que a vasta maioria dos bispos crê que a
disciplina actual não deve ser modificada e, caso viesse, que a mudança seria
ofensiva aos sentimentos e à cultura espiritual desses bispos e de muitos dos
fiéis. Portanto, levando em consideração as observações e o conselho daqueles
que “o Espírito Santo designou para governar” as Igrejas, tendo em vista a
gravidade da matéria e a força dos argumentos postos em evidência, o Santo
Padre decidiu não modificar a maneira existente de administrar a Sagrada
Comunhão aos fiéis. A Sé Apostólica, portanto, enfaticamente urge aos bispos,
aos sacerdotes e aos leigos que obedeçam cuidadosamente à lei que ainda é
válida e que foi novamente confirmada. Ela insta-os a considerar o julgamento,
dado pela maioria dos bispos Católicos, acerca do ritual actualmente em uso na
liturgia e do bem comum da Igreja».
Assim sendo, enquanto um bispo pode proibir a recepção da Sagrada Comunhão na
mão, por se tratar de um indulto concedido a pedido da Conferência dos Bispos,
não pode proibir a recepção da Sagrada Comunhão na língua, «a forma
tradicional com que é administrada, ao fiéis, a Sagrada Comunhão», porque é
a lei universal da Igreja.
Ainda mais inaceitável é a recusa da Sagrada Comunhão a uma pessoa ajoelhada. A
maneira mais respeitosa e reverente de receber a Sagrada Comunhão é de joelhos
e na língua.
4. Especificamente falando do COVID-19, como é que Vossa Eminência considera
que tem sido a gestão da Igreja face à presente situação?
Infelizmente, diante do COVID-19 a Igreja parece, por um lado, nunca ter
enfrentado um tal contágio, quando, na verdade, há uma história rica e
edificante sobre como a Igreja soube permanecer fiel à sua missão, apesar dos
grandes desafios de um contágio. Pensemos no exemplo heróico de São Carlos
Borromeu, de São Luís Gonzaga e de São Damião de Molokai, e de tantos outros
santos, mesmo nos nossos tempos.
Por outro lado, a Igreja parece pronta a seguir cegamente as directrizes do
Estado, que não tem autoridade para julgar as coisas sagradas, a título de
exemplo, a obrigação do sacerdote celebrar a Santa Missa todos os dias e,
sobretudo, nos dias festivos para o povo ou a maneira da celebração dos outros
sacramentos. Como resultado, num momento em que os fiéis precisavam, mais do
que nunca, do acesso à igreja e aos Sacramentos, encontraram as suas igrejas
fechadas e os seus sacerdotes proibidos de celebrar os Sacramentos. Graças a
Deus, pelo menos em alguns países, alguns bispos começaram a defender a justa
competência da Igreja.
A situação tem um significado muito além do COVID-19. A conduta submissa da
Igreja manifesta um falso conceito da relação entre a Igreja e o Estado. Este
conceito deve ser purificado e corrigido para que a Igreja possa oferecer ao
Estado o testemunho da presença de Deus no nosso meio e da lei divina segundo a
qual Deus nos criou e nos mantém vivos.
5. Já não é recente a tendência a fazer-se da Santa Missa um banquete, tal
como propõem os protestantes, sobretudo na forma como se trata o Sagrado Corpo
de Nosso Senhor Jesus Cristo, que continuamente Se oferece e sacrifica em todos
os altares do mundo. Com as imposições sanitárias por causa do COVID-19, têm
sido muitos os sacrilégios a Jesus Sacramentado. Acredita que estas imposições
vieram para ficar? Até que ponto é lícito um católico submeter-se a tais
imposições sacrílegas?
As imposições sanitárias nunca podem redundar em sacrilégios. Todas estas
imposições devem ser estudadas e, aquelas que não respeitam a realidade da
Sagrada Liturgia, devem ser eliminadas. Um cristão nunca se deve submeter a
actos sacrílegos. Deve-se refutar a cooperação em tais coisas. Deve prevalecer
a santa beleza dos sagrados ritos com uma prudente precaução contra o contágio.
6. Para terminar, pedimos a Vossa Eminência que dirija uma breve mensagem
aos católicos portugueses, sobretudo aos tantos que, com fiel devoção, rezam a
Nosso Senhor e à Virgem Santa Maria, Senhora do Rosário de Fátima, pelo Vosso
ministério.
Agradeço, sinceramente, a todos os católicos portugueses que rezam por mim
e pelo meu ministério. Peço-vos que continueis a rezar por mim. Preciso muito
da ajuda das vossas orações.
Tendo sido várias vezes peregrino ao Santuário de Fátima e tendo visitado
outras partes da grande nação que é Portugal, tenho uma forte sensação da
profundidade da fé de tantos portugueses. Encorajo-vos, como nos encoraja a
mensagem da Virgem Mãe do Senhor em Fátima, a confiar no Senhor que está sempre
connosco na Igreja, como Ele mesmo prometeu, e que nunca nos abandonará. O
Senhor só nos pede uma coisa: a fidelidade e a perseverança no amor a Ele e ao
próximo. Nunca nos disse que seria fácil segui-Lo, mas, em vez disso, disse-nos
que somos chamados a carregar a Cruz, a segui-Lo no Caminho da Cruz. Recordemos
as palavras de São Paulo no início da Carta aos Gálatas: «Mas, até mesmo se
nós ou um anjo do céu vos anunciar como Evangelho o contrário daquilo que vos
anunciámos, seja anátema» (Gl 1, 8). Não nos deixemos desanimar pelos
falsos profetas, pelos falsos mestres, mas permaneçamos sempre fiéis
testemunhas – mesmo, se necessário, mártires – de Cristo vivo na Santa Igreja
Romana. Não esqueçamos que, pelo Baptismo e pela Confirmação, recebemos a graça
de ser “soldados de Cristo”. Cada vez que recebemos a Sagrada Comunhão, esta
graça é nutrida e fortalecida. Quando somos tentados ao desânimo, recordemos as
palavras de Nossa Senhora de Fátima, que nos exorta a rezar o Santo Rosário e a
fazer muita penitência pela conversão do mundo: «Por fim, o meu Imaculado
Coração triunfará».
0 Comentários
«Tudo me é permitido, mas nem tudo é conveniente» (cf. 1Cor 6, 12).
Para esclarecimentos e comentários privados, queira escrever-nos para: info@diesirae.pt.