Quer se
trate de uma operação-verdade, como foi anunciado, ou de uma «surreal
operação de mistificação», como a imediatamente definiu o arcebispo Carlo
Maria Viganò, não há dúvida de que o relatório McCarrick, apresentado, ontem,
no Vaticano, é destinado a levantar mais questões do que as respostas que
oferece.
Enquanto se aguardam novos aprofundamentos específicos sobre a história do ex-cardeal
arcebispo de Washington Theodore McCarrick, há duas questões que saltam à
vista, ambas ligadas à homossexualidade: a primeira é a tolerância da prática
homossexual, mesmo entre o clero; a segunda está na ocultação da existência de
um lobby gay e de um sistema que favorece a “carreira” de eclesiásticos com
tendência.
Em relação ao primeiro ponto, embora emerja do relatório a figura de um McCarrick
predador em série, a grande reacção é desencadeada apenas quando, em 2017,
chega a primeira denúncia de abusos de um menor. E isso está bem sublinhado em
vários pontos do relatório, mas também é o dado sobre o qual insiste o director
da comunicação vaticana, Andrea Tornielli, no seu editorial de apresentação do relatório, publicado no portal Vatican News. Depois de anos de rumores,
cartas anónimas e acusações «sem fundamento», referentes a «comportamentos
imorais com adultos» – explica Tornielli –, «tudo muda com o surgimento
da primeira denúncia de abuso de um menor. A resposta é imediata. A disposição gravíssima
e inédita da demissão do estado clerical surge na conclusão de um rápido
processo canónico».
Na prática, dizem-nos que os «comportamentos imorais com adultos» não
são, certamente, uma coisa boa, mas, no final, são tolerados; o alarme real,
aquele que também prevê sanções pesadas, só é accionado com a menor idade do
abusado. Como se as dezenas e dezenas de futuros padres que partilharam a cama
com McCarrick e, portanto, em grande parte condenados a uma vida sacerdotal, no
mínimo, desequilibrada, não contassem muito. Como se a devastação moral e de fé
provocada por um bispo predador – vocações perdidas, sacerdotes que, por sua,
vez repetirão os abusos, nomeações episcopais distorcidas por laços mórbidos –
fossem um problema menor. Claro, os rumores persistentes desaconselhavam a
promoção de McCarrick a sedes de prestígio, mas a armadilha só é accionada
quando, entre os acusadores, aparece um menor. É uma abordagem gravíssima que
ignora o facto de que o segundo crime – abusos sobre menores – é filho do
primeiro.
Quanto ao segundo aspecto, a reconstrução do caso McCarrick acredita a ideia de
que se trata de uma página negra para a Igreja, sim, mas, em todo caso, um
episódio que, graças a todas as medidas tomadas, sobretudo, pelo Papa
Francisco, será mais difícil de voltar a acontecer. «Uma história triste com
a qual toda a Igreja aprendeu», diz Tornielli.
É duvidoso, acima de tudo, porque se ignorou, deliberadamente, que o que
permitiu a irresistível ascensão de McCarrick foi um sistema de poder também
chamado de lobby gay, que favorece a nomeação e a carreira de bispos com determinadas
características. Da leitura do relatório, publicado ontem, poder-se-ia pensar
que o caso McCarrick seja o resultado de uma combinação infeliz de diferentes
factores: a personalidade exuberante (para usar um eufemismo) do personagem, a
falta de regras claras, a imprecisão das acusações, o erro, de boa-fé, de um
Papa, a fraqueza do governo de um outro. Claro, estes também são elementos que
tiveram o seu peso, mas o verdadeiro problema é que, sem a existência de uma
rede de relações e de cumplicidades a diversos níveis, certas carreiras seriam
quase impossíveis.
E esta rede não funcionou só para McCarrick, pelo contrário, há elementos que
sugerem que, nos últimos anos, se tenha fortalecido. Lembramos o caso do Chile,
em 2018, com o Papa Francisco que teve de se render às evidências não antes de
ter desqualificado as vítimas que acusavam bispos e padres abusadores. Também nos
recordamos da misteriosa cobertura, no Vaticano, oferecida ao bispo argentino
Zanchetta. Recordamos as denúncias que perseguem o cardeal hondurenho Óscar
Rodríguez Maradiaga, coordenador do grupo de trabalho dos cardeais que apoiam o
Papa Francisco na reforma da Cúria («todas calúnias», disse o Papa no
ano passado), e cujo bispo auxiliar, Juan José Pineda, teve que se demitir, em Julho
de 2018, por abusos sexuais no seminário. E também recordamos as “vozes” que da
sua terra natal, Puglia, acompanham a rápida ascensão do agora nomeado cardeal
Marcello Semeraro, que fez de sua actual Diocese de Albano a capital italiana
dos cristãos LGBT. Voltando a McCarrick, não esqueçamos que há vários bispos
americanos nomeados graças ao patrocínio do ex-cardeal.
E poderíamos continuar. Não, não há, realmente, um sinal de que a Igreja tenha
aprendido com o caso McCarrick; pelo contrário, há a sensação de que se faz
pagar um para poderem continuar tranquilamente os outros. E, enquanto isso,
promover a ideia de que, para um padre, ter tendências homossexuais não é um
problema.
Riccardo Cascioli
Através de La Nuova Bussola Quotidiana
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