O portal católico Dies Iræ tem a grande honra de apresentar, em exclusivo, uma entrevista que realizou à italiana Cristina Siccardi, licenciada em Letras, no ramo da História, e especialista em biografias, principalmente de Santos. Ao longo desta entrevista, Siccardi aborda o inegável gosto pela Hagiografia, questões relacionadas com as causas de beatificação e de canonização, a Liturgia e, naturalmente, a manipulação da figura de São Francisco de Assis.
1. Muito obrigado
por tão cordialmente ter acedido à realização desta entrevista em exclusivo
para o portal católico português Dies Iræ. Como e quando decidiu escrever as
biografias dos Santos da Igreja Católica e outros excelentes livros e artigos?
Como é que consegue compaginar uma exigente vida de mãe de família com a
escrita, a pesquisa, a leitura e, ainda, encontrar inspiração para produzir uma
muito meritória obra literária e devocional?
Na minha família
de origem, liam-se as vidas dos Santos e era sempre um momento belíssimo e
formativo, depois continuei a lê-las. A minha paixão pela História levou-me a
escolher, depois do Secundário, a Faculdade de Letras e Filosofia com uma
orientação histórica com um plano de estudos rico em História do Cristianismo e
História da Igreja. A minha tese de licenciatura, sobre os escritos da vendeana
Giulia Colbert, Marquesa de Barolo, agora Venerável, foi publicada em 1992 e, desde
então, a paixão tornou-se profissão, foi assim que saíram muitas biografias de
testemunhas do Evangelho e livros-investigação sobre História da Igreja e sobre
Arte Sacra, que também foram traduzidas em diversas línguas. Quando nasceu o
meu primeiro filho, despedi-me, de comum acordo com o meu marido, da redacção do
semanário católico “il nostro tempo”, onde trabalhava, visto que a família vem
em primeiro lugar se se escolhe este estado de vida; mas, graças às ferramentas
informáticas actuais, nestes trinta anos foi possível prosseguir a
investigação, o estudo, a actividade editorial e jornalística. A Providência, claramente,
foi e é determinante.
2. Sobretudo desde o Pontificado de João Paulo II, aumentou enormemente o
número de beatificações e de canonizações e, sobretudo, de processos que
levantam sérias dúvidas, como, por exemplo, o de Mons. Óscar Romero,
beatificado e canonizado no Pontificado do Papa Francisco, ou a possível
beatificação do polémico Mons. Hélder Pessoa Câmara, antigo Arcebispo de Olinda
e Recife, no Brasil, que foi um sobejamente conhecido promotor do modernismo,
em particular da Teologia da Libertação. De que modo vê tudo isto?
Tudo isso se enquadra num contexto que podemos definir “fenomenologia do
modernismo”, uma patologia da Igreja iniciada no século XIX e condenada, por
São Pio X, com a encíclica Pascendi Domini Grecis, uma heresia («síntese
de todas as heresias», como foi chamada pelo Papa Sarto) que pretendia
submeter a Igreja às exigências liberais e relativistas do pensamento
secularizado; mas a condenação papal não foi suficiente para erradicá-la e eis
que essas instâncias penetraram no Concílio Vaticano II e, desde há cinquenta
anos, a Igreja foi revolucionada em todas as suas formas, inclusive doutrinária
e catequética, incluindo, portanto, o aspecto hagiográfico, para o qual, em
muitos casos, se consideram dignas de elevar às honras dos altares figuras
politicamente consideradas interessantes, em detrimento do exame das virtudes
em em grau heróico, requisito que sempre foi considerado essencial nos
processos de beatificação e canonização.
3. No ano em que se assinalam os cem anos da morte de Santa Jacinta Marto,
irmã de São Francisco Marto e prima da Irmã Lúcia, videntes de Fátima, o que é que, nos nossos dias, temos a aprender com o seu exemplo?
Enquanto o mundo trava uma guerra político-sanitário-económica, desencadeada
pelo COVID-19, comemora-se, como bem recorda, o centenário da morte, aos dez
anos, de Santa Jacinta Marto (Aljustrel, 11 de Março de 1910 – Lisboa, 20 de Fevereiro
1920) devido à pandemia do vírus da Gripe Espanhola (gripe H1N1), doença que
afectou também o seu irmão Francisco. A inocente vontade de Jacinta de se
dedicar totalmente, depois das aparições de Nossa Senhora de Fátima, à oração,
à recitação do Santo Rosário, às penitências, completou-se com o sacrifício da
própria vida pelos “pobres pecadores”, pela Igreja e pelo Papa. Até ao momento
das aparições do Anjo de Portugal (1916) e de Nossa Senhora de Fátima (1917),
tinha sido uma criança enérgica, alegre e despreocupada que gostava de cantar e
dançar; depois, transformou-se e tornou-se, como demonstram os testemunhos e as
fotografias que a retratam, muito séria, só mais dedicada à conversão dos
pecadores e a salvar as almas do Inferno. Aqui está: Santa Jacinta ensina-nos a
ter um olhar sobrenatural, menos ligado ao mundo e às suas misérias, a ter uma
atenção vertical e não horizontal. A santidade da Jacinta não é a da “sala de
visitas”, da fraternidade mundial, mas, como todos os Santos de Deus, incita e
impulsiona à conversão da própria alma e da própria vida em nome e por amor de
Cristo, único portador da Verdade e da salvação eterna.
O perfil que Lúcia traça da prima é extraordinário: é o retrato dos puros de
coração. «Se soubessem…» repetia sempre, pensando nos homens dos tempos
modernos. Se soubessem o quê? «Que os actos desta vida terrena têm um valor
eterno. Este é o grande problema do homem de hoje: não sabendo mais o que está
a fazer no mundo, procura avidamente o sentido das coisas, sem jamais
encontrá-lo», escreveu, no livro Giacinta (Etabeta), o monge P. Serafino
Tognetti, da Comunidade dos Filhos de Deus.
4. Num artigo que publicou, em Abril de 2020, na Corrispondenza
Romana, referiu o feliz aumento – durante o período de confinamento provocado
pelo COVID-19 – do número de sacerdotes que tomam contacto com a Missa
Gregoriana e com toda a liturgia anterior ao Concílio Vaticano II. Em oposição,
considera que a actual liturgia, manifestamente próxima dos cultos
protestantes, educa para a santidade?
O Novus Ordo, como demonstram sérios estudos teológicos e históricos,
foi, claramente, uma revolução litúrgica – provocada, in primis, por
Mons. Annibale Bugnini (1912-1982) – para aproximar a Missa ao espírito
protestante; o resultado foi trágico: cada vez menos fiéis na igreja, cada vez
mais confusão, cada vez menos fé. O sensus fidei das almas, seja de quem
tem uma vocação sacerdotal ou religiosa, seja dos leigos, conduz, diria, de
maneira natural e fisiológica à Santa Missa da Tradição: basta assistir a uma
Santa Missa em Vetus Ordo para perceber a substancial diferença (como
não notar a concentração do sacerdote e a concentração dos fiéis diante do Mistério
eucarístico? Mesmo as crianças pequenas permanecem atentas e em silêncio: é o
efeito da sacralidade que se sente no ar). É a intentio liturgica não
traída que remete a uma fé autêntica, onde gestos, palavras, sinais e símbolos concorrem
para criar uma sinfonia religiosa harmoniosa, perfeita na sua beleza e
integridade, a começar por dirigir o olhar para Deus e para o Tabernáculo e não
para a assembleia (para usar o termo caro à linguagem católica
protestantizada). Na Missa de sempre, ao centro está apenas o Santo Sacrifício
do altar e nada mais, sem distracções antropocêntricas.
5. Mais recentemente, nomeadamente no Pontificado de Bergoglio, tem-se
assistido a uma manipulação da vida e da acção de São Francisco de Assis. Na
encíclica Fratelli tutti, Bergoglio coloca no mesmo plano do “pobrezinho
de Assis” figuras como Martin Luther King, Desmond Tutu e Mahatma Gandhi. A seu
ver, o que se pretende com isto?
Para São Francisco, não havia fraternidade a não ser em Cristo Senhor. São
Francisco falava, escrevia, pregava, ia em missão para converter: o seu único
propósito foi viver em Cristo para levar Cristo às pessoas e fez abundantes
colheitas de almas. São Francisco não pode ser associado nem a Martin Luther
King, nem a Desmond Tutu, nem a Mahatma Gandhi... Quem, hoje, fala em nome de
São Francisco não quer converter, mas fazer irmãos através de um espírito
globalista e relativista, onde as religiões estão todas colocadas ao mesmo
nível, sem considerar o Caminho indicado pelo Filho de Deus, que é Verdade e
Vida. Com clara evidência e sem ambiguidades, estamos diante da mistificação de
uma das personalidades mais marcantes da história da Igreja, como já expliquei,
com as Fontes Franciscanas nas mãos, e sem qualquer outra interpretação,
na biografia histórico-espiritual San Francesco. Una delle figure più
deformate della storia (Sugarco Edizioni).
Recordo que o título da encíclica do Papa Francisco, Fratelli tutti, foi
extraído de uma precisa e explícita citação das suas Admoestações: «Irmãos,
ponhamos todos diante dos olhos o Bom Pastor que, para salvar as suas ovelhas,
sofreu a paixão da cruz. As ovelhas do Senhor seguiram atrás dele, na
tribulação e na perseguição e no opróbrio, na fome e na sede, na enfermidade e
na tentação, e nas demais provações; e, como recompensa, receberam do Senhor a
vida eterna. Disto deveríamos ter vergonha, nós os servos de Deus: Que os
santos tenham praticado boas obras, e nós, só de contar e pregar o que eles
fizeram, já daí queremos receber honra e glória» (VI, 1-3, FF 155). São Francisco,
que se definia “católico” (para se diferenciar das heresias do seu tempo, em
particular as heresias cátaras e valdenses), que falava da Santíssima Trindade
(para não se confundir com o Deus dos hebreus e o Alá dos muçulmanos), que foi o
primeiro a ter as chagas de Nosso Senhor impressas na sua carne, foi Alter
Christus, vindo ao mundo para converter as almas, pagar, pessoalmente, o seu
preço pelos pecadores e restaurar a Igreja em Cristo.
6. Por fim, gostaríamos de lhe pedir que dirigisse uma mensagem aos nossos
leitores de língua portuguesa.
Com muito prazer, obrigada. A vossa nação remete-me a acontecimentos
históricos que me são caros: aos vossos grandes, corajosos e católicos
primeiros soberanos, Afonso I e Mafalda de Saboia, sobre os quais fiz estudos
aprofundados, descobrindo que a Dinastia Saboia (eu nasci em Turim) é ligada
por um duplo nó a Portugal, também as Aparições de Fátima, como falei no livro Fatima
e la passione della Chiesa (Sugarco Edizioni), e será lançado, em Novembro
deste ano, o ensaio Casa Savoia e la Chiesa. Una grande, millenaria
Storia europea com documenti inediti e un intervento di Re Simeone II di
Bulgaria (Sugarco Edizioni), onde, também nesta ocasião, falei longamente
sobre as ligações entre Portugal e a Casa de Saboia. O Senhor quis que nascessem
numa nação privilegiada: aí venceu o Catolicismo contra o Islão, aí apareceu
Nossa Senhora de Fátima e aí, como declarou Nossa Senhora, «conservar-se-á
sempre o dogma da fé». Precisamente por estes divinos motivos, estou certa
de que os portugueses que permaneceram católicos serão fiéis à Rainha dos Céus
e concorrerão para o apoio à Igreja militante da Tradição, através da qual não
há confusão e não há apostasia, mas apenas certezas de Verdade, aquela Verdade
que conduz à verdadeira paz das almas, das famílias e das nações, precisamente
como ensinaram Jesus, os seus Apóstolos e os seus Santos, entre os quais
Francisco de Assis.
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