A pedido do
Arcebispo Carlo Maria Viganò, o portal Dies Iræ oferece aos leitores de língua
portuguesa a tradução de uma breve entrevista que Sua Excelência Reverendíssima
concedeu, no passado dia 11 de Outubro, a John-Henry Westen, sobre a Encíclica
Fratelli tutti.
11 de Outubro de 2020
Divina Maternidade de Maria Santíssima
1. Qual é a sua opinião sobre Fratelli tutti, em
particular no que diz respeito ao silêncio sobre o aborto, especialmente em
consideração àquelas que a Encíclica define como «as maiores preocupações»
para os políticos?
Fratelli tutti, falando das preocupações que deveriam mover a acção de
um político, menciona «o fenómeno da exclusão social e económica, com as suas
tristes consequências de tráfico de seres humanos, tráfico de órgãos e tecidos
humanos, exploração sexual de meninos e meninas, trabalho escravo, incluindo a
prostituição, tráfico de drogas e de armas, terrorismo e criminalidade
internacional organizada»[1].
São todas pragas a denunciar, mas que creio que são reconhecidas como tal por
qualquer pessoa. O ponto central, e muito mais importante do ponto de vista
moral, que a Encíclica não menciona é o aborto, hoje tragicamente reivindicado
como um direito[2].
Este silêncio estrondoso sobre o crime mais odioso aos olhos de Deus – uma vez
que é cometido sobre uma criatura inocente e indefesa privando-a da vida – trai
o estrabismo deste manifesto ideológico ao serviço da Nova Ordem Mundial. Um
estrabismo que olha para as instâncias do pensamento único com inclinada submissão
psicológica e para o ensinamento do Evangelho com o olhar míope e embaraçado de
quem o considera impraticável e desactualizado.
A dimensão espiritual e transcendente é completamente ignorada, assim como a Moral
natural e católica. Mas que fraternidade pode haver entre os homens,
se matar um inocente não é considerado relevante? Como se pode condenar a
exclusão social, silenciando a mais criminosa exclusão social que é a de um filho
que tem o direito de viver, de crescer, de ser amado e de amar, de adorar e
servir a Deus, e de ter a vida eterna? De que adianta ocupar-se do tráfico de
armas, se nos podemos declarar “irmãos” daqueles que desmembram um bebé no
útero, daqueles que lhe sugam o cérebro um instante antes do parto? Como
confrontar a fraternidade com o horror daqueles que envenenam o enfermo
ou o idoso, privando-o da possibilidade de se unir à Paixão do Senhor no
sofrimento? Que respeito pela natureza se pode invocar, quando se aceita que se
possa modificar o sexo das pessoas inscrito nos nossos cromossomas, ou que se
possa considerar família a união estéril de dois homens ou de duas mulheres? A
fúria destrutiva da “mãe terra” não se aplica àqueles que, adulterando a
maravilhosa obra do Criador, reivindicam o direito de modificar o ADN de
plantas, animais e seres humanos?
Fratelli tutti é uma encíclica a que não falta apenas Fé: falta também
Esperança e Caridade. Nas suas palavras não se sente o eco da voz do divino
Pastor e do Médico das almas, mas o rugido do lobo voraz ou o silêncio surdo do
mercenário (Jo 10, 10). Não há sopro de amor nem para Deus nem para o homem,
porque para se querer realmente o bem do homem moderno é necessário afastá-lo
da hipnose bonista, ecologista, pacifista, ecuménica, globalista. Para querer
bem ao homem pecador e rebelde, é necessário fazê-lo compreender que, longe do
seu Criador e Senhor, acabará por ser escravo de Satanás e de si mesmo, e que a
sua fraternidade com outros condenados não remediará a inevitável
inimizade com Deus; que não será o mundo, não serão os filantropos a julgá-lo,
mas Nosso Senhor, morto na Cruz também por ele.
Creio que esta tristíssima Fratelli tutti representa, de certa forma, o
vazio de um coração murcho, de um cego privado da visão sobrenatural que,
através do tacto, crê poder dar uma resposta que é o primeiro a ignorar. Sei
bem que é uma afirmação triste e grave, mas penso que mais do que nos
perguntarmos sobre a ortodoxia deste documento, devemos perguntar-nos qual é o
estado de uma alma incapaz de sentir um impulso de Caridade, de se deixar
aquecer por um raio divino naquele cizento tétrico representado pelo seu sonho
utópico, caduco, fechado à Graça de Deus.
O intróito da Missa deste domingo soa para nós como um aviso:
«Salus populi ego sum, dicit Dominus: de quacumque tribulatione clamaverint
ad me, exaudiam eos: et ero illorum Dominus in perpetuum. Attendite, popule
meus, legem meam: inclinate aurem vestram in verba oris mei»[3].
O Senhor é a salvação do seu povo, que será ouvido na tribulação enquanto
escutar a Sua lei. Nosso Senhor diz-nos claramente: «Sem mim, nada podei
fazer» (Jo 15, 5). A utopia da Torre de Babel, por mais que se possa actualizar
e mostrar sob as novas aparências das Nações Unidas ou da Nova Ordem Mundial,
está destinada a desabar pedra por pedra, porque não é fundada na pedra angular
que é Cristo.
«Eles constituem apenas um povo e falam uma única língua. Se principiaram
desta maneira, coisa nenhuma os impedirá, de futuro, de realizarem todos os
seus projectos. Vamos, pois, descer e confundir de tal modo a linguagem deles
que não consigam compreender-se uns aos outros» (Gn 11, 6-7).
O pacifismo globalista e ecuménico de Fratelli tutti anuncia um
paraíso na terra que se baseia em não querer reconhecer a Realeza de Cristo
sobre as sociedades e sobre o mundo inteiro; em silenciar o escândalo da Cruz,
considerada elemento “divisivo” e não a única esperança de salvação para a
humanidade; em não recordar que as injustiças sociais e os males que há no
mundo são efeito do pecado, e que só nos conformando com a vontade de Deus poderemos
esperar a paz e a concórdia entre os homens. Homens que só podem ser irmãos em
Cristo reconhecendo a paternidade de Deus.
A Encíclica carece de Esperança, entendida como virtude teologal, infusa por
Deus na alma, pela qual desejamos o Reino dos Céus e a vida eterna, depositando
a nossa confiança nas promessas de Cristo e contando não com as nossas forças,
mas com a ajuda de Graça do Espírito Santo[4].
Esperar que uma fraternidade horizontal possa garantir a paz e a justiça nada
tem de sobrenatural, porque não olha para o Reino dos Céus, não se baseia nas
promessas de Cristo e não considera necessária a Graça divina, confiando no
homem corrompido pelo pecado original e, portanto, inclinado para o mal. Quem
alimenta essas falsas esperanças – por exemplo, ao afirmar que «não é
preciso crer em Deus para ir para o paraíso»[5]
– não cumpre um acto de Caridade, pelo contrário: encoraja os ímpios no caminho
do pecado e da perdição, tornando-se cúmplice da sua condenação e do seu desespero.
E contradiz as próprias palavras do Salvador: «Já vos disse que morrereis
nos vossos pecados. De facto, se não crerdes que Eu sou o que sou, morrereis
nos vossos pecados» (Jo 8, 24).
Acrescento, com grande dor, que, ultimamente, a resposta da Igreja perante o
mal, a morte, a doença, o sofrimento e as injustiças no mundo parece faltar,
aliás, totalmente ausente. Como se o Evangelho não tivesse nada a dizer ao
homem moderno ou se o que tem a dizer estivesse ultrapassado e desactualizado: «Não
quero vender receitas que não servem, esta é a realidade»[6].
Congela-se o sangue nas veias ao ler estas palavras: «Deus é injusto? Sim, foi
injusto com o seu Filho, mandou-o para a cruz»[7].
Não há necessidade de refutar esta afirmação; basta observar que, se negarmos
que o pecado é a causa da dor e da morte que afligem a humanidade, acabamos,
inevitavelmente, por colocar a responsabilidade em Deus, acusando-O de ser «injusto»
e, portanto, excluindo-O do nosso horizonte. Daqui se compreende como a procura
da fraternidade humana se resume nas palavras do Salmista: «Revoltam-se
os reis da terra e os príncipes conspiram juntos contra o Senhor e contra o seu
ungido» (Sl 2, 2).
Assim a Igreja – ou melhor: a sua contrafacção que a eclipsa quase
completamente – já não oferece qualquer resposta católica ao homem desesperado
e sedento de Verdade, mas, pelo contrário, alimenta o escândalo da dor e do
sofrimento de que o pecado é a causa, colocando a responsabilidade em Deus e insultando-O
como «injusto».
2. Excelência, imagino que tenha visto os líderes pró-vida nos Estados
Unidos implorar aos Bispos que declarassem abertamente que o aborto é a questão
primordial nestas eleições presidenciais. Vários Bispos disseram exactamente o
contrário e agora usam os pontos de discussão da encíclica do Papa Francisco
para apoiar as suas ideias. O que sugere aos seus irmãos Bispos e aos fiéis?
O silêncio sobre o aborto é um sinal terrível do retrocesso espiritual e moral
daquela parte da Hierarquia que renega a própria missão porque renegou Cristo.
E como no aborto a mãe mata o filho que deveria amar, proteger e gerar para a
vida terrena, assim, na presente fraude, a Igreja, desejada por Deus para gerar
almas para a vida eterna, encontra-se a matá-las espiritualmente no seu próprio
ventre por causa da traição dos seus Ministros. A inimizade dos inimigos de
Cristo não poupa a Sua Santíssima Mãe, cuja divina Maternidade é odiada por
Satanás, porque, através d’Ela, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade fez-se
homem para nos redimir. Se somos amigos da Santíssima Virgem, os Seus inimigos
são os nossos inimigos, segundo o que o Senhor estabeleceu no Proto-Evangelho: «Farei
reinar a inimizade entre a tua descendência e a dela» (Gn 3, 15).
Recordo aos meus Irmãos que foram ungidos com o Santo Crisma como atletas
da Fé, não como espectadores neutros da luta entre Deus e o adversário. Aos
poucos e corajosos Pastores que levantam a voz para defender os princípios
invioláveis e inegociáveis que o Senhor
consagrou na Lei natural, rogo a todos os que hoje hesitam por temor, por pavidez
ou por um falso conceito de prudência que a eles se juntem. Tendes a “graça
de estado” para serdes ouvidos pelo vosso rebanho, que reconhece em vós a voz
do divino Pastor (Jo 10, 2-3). Não tenhais medo de proclamar o Evangelho de
Cristo, assim como não tiveram medo de enfrentar o martírio os Apóstolos e as
fileiras dos Bispos seus sucessores.
Aos fiéis, desorientados com o silêncio de tantos covardes, peço-lhes que
elevem as suas orações ao Céu, invocando do Paráclito aquelas graças que só o
Espírito Santo pode infundir nos corações endurecidos e rebeldes: Lava quod
est sordidum, riga quod est aridum, sana quod est saucium. Flecte quod est
rigidum, fove quod est frigidum, rege quod est devium. Oferecei os vossos
sacrifícios, as vossas penitências, as dores da doença pela Igreja e pelos vossos
Pastores.
3. Recentemente, entrevistei a esposa do ex-candidato ao Supremo Tribunal,
Robert Bork, que falou sobre a falta de apoio da Igreja ao seu marido durante as
suas escandalosas audiências; também deu a entender que o seu ataque foi
liderado pelo “católico” republicano Teddy Kennedy. Como avalia os ataques que
o juiz Barrett está a sofrer, principalmente por causa da sua fé?
O ódio do mundo, de que Satanás é o príncipe (Jo 12, 31), é a mais evidente
negação do sonho utópico de Fratelli tutti. Não pode haver fraternidade
entre os homens se essa prescinde da comum paternidade do único verdadeiro
Deus, Uno e Trino. Aqueles que pregam a igualdade e a paridade dos direitos
na medida em que se trata de dar cidadania ao erro e ao vício, tornam-se
intolerantes ao verem em risco o poder usurpado tão logo um político católico,
em nome dessa paridade de direitos, queira testemunhar a própria Fé no legislar
e no governar. Assim, a tão desejada fraternidade só se realiza entre os filhos
das trevas, excluindo, necessariamente, os filhos da luz, ou forçando-os a renegar
a própria identidade. E é significativo que a única declinação desta
fraternidade parece fundar-se na rejeição de Cristo, enquanto é considerada
impossível uma verdadeira e santa fraternidade no vínculo da Caridade, «na
justiça e na santidade próprias da verdade» (Ef 4, 24).
Com a unção da Confirmação, o Católico torna-se soldado de Cristo: um soldado
que não combate pelo seu Rei e pensa aliar-se ao inimigo é um traidor, um
renegado, um desertor. Sejam, pois, os políticos católicos e todos os que
ocupam cargos institucionais, testemunhas d’Aquele que por eles derramou o seu
Sangue: não só receberão as graças necessárias para cumprir a sua missão na
vida pública, mas serão um exemplo para os seus irmãos e merecerão o prémio
eterno, que é a única coisa realmente importante. «Te nationum praesides
honore tollant publico; colant magistri, judices, leges et artes exprimant»[8].
[1] Discurso
à Organização das Nações Unidas, Nova Iorque, 25 de Setembro de 2015, AAS
107 (2015), 1039. Citado na Encíclica Fratelli tutti, n. 188.
[2] A única
menção indirecta ao aborto é n. 24 da Encíclica, em que se denuncia a violência
contra as mulheres, «depois forçadas a abortar», mas sem que o infanticídio
seja condenado em si. A referência ao nascituro, em Fratelli Tutti, n.
18, é muito fraco e não menciona explicitamente o termo “aborto”. Usar apenas
três palavras sobre o crime mais abominável que envolve milhões de mortes todos
os anos no mundo, não muda a evidência de que a encíclica é, literalmente,
obcecada pela solidariedade humana em apoio à agenda globalista. Além
disso, no contexto da campanha eleitoral dos Estados Unidos (concomitante com a
publicação do documento papal), uma explícita condenação do aborto contradiria
abertamente o candidato democrata, que é fortemente a favor. Acrescento que as
referências aos bebés mais parecem direccionadas às famílias islâmicas, em
particular às dos imigrantes, que, segundo Bergoglio, representam o futuro
demográfico da Europa.
[3] «Eu
sou a salvação do meu povo, diz o Senhor. Quando chamar por Mim nas suas
tribulações, Eu o atenderei e serei o seu Deus para sempre. Escuta, meu povo,
os meus ensinamentos; presta atenção às minhas palavras». Ps. 77, 1, Dominica
XIX post Pentecosten, Introitus.
[4] CIC,
1817.
[5] https://www.independent.co.uk/news/world/europe/pope-francis-assures-atheists-you-don-t-have-believe-god-go-heaven-8810062.html.
[6] Il
Papa: non c’è una risposta alla morte dei bambini, in: Avvenire, 15 de
Dezembro de 2016 – https://www.avvenire.it/papa/pagine/papa-udienza-al-bambino-gesu.
[7] Ibid.
[8] «Que os
governantes das nações vos honrem publicamente, que os magistrados e juízes vos
reverenciem, que as leis e as artes exprimam a vossa realeza», do hino Te
saeculorum Principem para a festa de Cristo Rei.
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