Deve
despertar não pouca ironia entre os celestes habitantes do céu a utopia do
homem – criatura caída e redimida, destinada a regressar ao pó na escuridão de
um sepulcro – que se apresenta como deus de si mesmo e começa a agitar, opportune
et inopportune, os seus direitos. Porque o ensurdecedor mantra dos
chamados “direitos humanos” corrompe a sociedade moderna e também penetrou no
ensinamento e na acção da Igreja. No tempo de pandemia em que vivemos, o
princípio dos direitos humanos começou a ruir, revelando-se pelo que é: uma insana
utopia baseada na prometeica ilusão de um homem desvinculado do seu Criador. Chocam
os direitos dos doentes e os direitos dos sãos; os direitos do estado e os
direitos dos cidadãos; os direitos dos professores e os direitos dos alunos, e
assim por diante, até chegar – e aqui está o apogeu da utopia – aos direitos
dos sacerdotes que chocam com os direitos dos fiéis. Mas na Igreja Católica não
pode haver nenhum tipo de conflito, pois a hierarquia dos valores morais é bem
determinada, sendo fundada no direito divino, natural e positivo. Esta
hierarquia de valores parece tristemente esquecida até mesmo por aqueles que
não deveriam apenas conhecê-la, mas também legislar e pregar para seja
respeitada. Convém, portanto, revisitá-la.
Toda a moral evangélica funda-se no amor a Deus e ao próximo numa ordem bem
estabelecida. A causa pela qual se ama a Deus é o próprio Deus, diz São
Bernardo. Então, amámo-nos a nós mesmos e ao próximo em vista de Deus. «E
por que nos amamos? – pergunta-se São Francisco de Sales – Porque fomos
feitos à imagem e semelhança de Deus. E, como todos os homens têm essa
dignidade, amámo-los como a nós mesmos, considerando-os vivas e santas imagens
da divindade». A caridade para com o próximo, que nos é ordenada, não é,
portanto, na ordem natural, mas pertence, essencialmente, à sobrenatural. Não é
uma alegre fraternidade, ainda que fosse universal, que nos faz amar o próximo,
porque nos deleita ou nos faz bem. Ele faz-nos amá-lo porque, como dizia Santo
Agostinho, ou é filho de Deus ou é chamado a sê-lo. E, como todos os
homens são assim, devemos amá-los a todos. A caridade é universal: abrange a
terra, o céu e os seus habitantes, e o purgatório; pára apenas às portas do
inferno: «apenas os condenados – escreve o P. Réginald Garrigou-Lagrange
– não podem ser amados com caridade», porque não podem mais – nem querem
– tornar-se filhos de Deus e, portanto, já não podem atrair a nossa compaixão.
Aqui, então, surge a hierarquia dos valores que um verdadeiro filho de Deus e
da Igreja não se pode dar ao luxo de ignorar. O P. Garrigou-Lagrange,
baseando-se em São Tomás de Aquino, enumera-os em sucessão de importância: «Antes
de tudo – escreve – devemos amar a Deus mais do que qualquer outra
coisa, depois a nossa alma, depois o nosso próximo e, por último, o nosso corpo».
No amor evangélico, o corpo ocupa o último lugar. Além disso, o próprio Senhor tinha-o
explicado bem, dizendo: «Se a tua mão ou o teu pé são para ti ocasião de
queda, corta-os e lança-os para longe de ti: é melhor para ti entrares na Vida
mutilado ou coxo do que, tendo as duas mãos ou os dois pés, seres lançado no
fogo eterno» (Mt 18, 8).
Tendo presente esta hierarquia da caridade, vemos o quão foi derrubada pelo
sentir do homem (e também do católico) moderno. Na recente pandemia, tivemos
uma incontestável prova disso. Os direitos de Deus (como a
Missa dominical ou a comunhão na mão) foram subordinados à fobia do contágio do
COVID-19. O amor, que é devido primeiro à alma do que ao corpo, foi destruído
com as cómodas Missas em streaming e a renúncia aos sacramentos por
longos meses a fim de evitar o vírus. O amor, que devemos às nossas almas antes
que ao próximo, foi suplantado por um amor desordenado ao próximo que, para
evitar contagiar os outros, nos impele a abster-nos das práticas religiosas
ainda possíveis. Não há nada de evangélico nisso tudo. Embora deva usar a
virtude da prudência, a ordem da caridade estabelecida por Deus não pode ser
anulada.
São Tomás de Aquino faz com que a perfeição cristã consista, precisamente, na
caridade, porque a caridade une a alma a Deus, que é o seu fim último: sem a
caridade, o homem é como um nada na ordem espiritual. Ora –
continua o Doutor Angélico –, sabemos que os preceitos da caridade são dois: o
amor a Deus e o amor ao próximo, onde o primeiro está a um nível superior ao
outro, pois o primeiro é o amor da caridade próprio dos bem-aventurados,
enquanto o segundo é aquele que significa que, com respeito «ao nosso
próximo, devemos amar e desejar com o amor da caridade que também ele chegue
connosco à bem-aventurança». O fim do amor ao próximo é, portanto, a sua
bem-aventurança eterna, não o prolongamento do exílio terreno, destinado a
terminar, inexoravelmente, com o declínio desta vida. Cada cristão é chamado a
amar a Deus e ao próximo com este amor sobrenatural, segundo a ordem
estabelecida por Deus e não pelos homens: trata-se de um dever, porque a
caridade é um preceito e não um conselho.
Cristiana de Magistris
Através de Corrispondenza Romana
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