Muitas pessoas perguntam-se se a actual crise na
Igreja começou com o Concílio Vaticano II. Outros acreditam que a crise é
anterior ao Concílio e, portanto, este último não pode ser acusado de causá-la.
A realidade é mais complexa. Se a Igreja não estivesse em crise, o Concílio
Vaticano II, com todas as suas inovações em termos de doutrina, pastoral,
liturgia e disciplina, teria sido impossível. Por outro lado, embora o Concílio
não esteja na origem da crise actual, tornou-a mais profunda e universal.
Efectuou também uma mudança quase completa de mentalidade entre os católicos,
levando-os, por um lado, a abandonar o espírito de sacrifício, a piedade e o
senso de sacralidade e, por outro, a aproximarem-se do mundo, das suas pompas e
obras.
A “Aliança Europeia” ou “Grupo do Reno”
Após o Concílio Vaticano II, foram publicados estudos documentados
mostrando que, desde o seu início, uma minoria bem organizada de Bispos e
teólogos progressistas, com métodos e objectivos bem definidos, conseguiu
assumir o controlo das suas operações e resultados.
Em Janeiro de 1967, logo após o fim do Concílio, o P. Ralph M. Wiltgen, S.V.D.,
publicou The Rhine Flows Into the Tiber:
The Unknown Council[1].
O livro tornou-se famoso e foi traduzido para várias línguas. O título resume a
tese do livro: desde o início, o Concílio Vaticano II foi dominado por uma
aliança de Bispos e teólogos progressistas europeus de países situados às
margens do Rio Reno ‒ França,
Alemanha e Holanda.
Durante o Concílio em Roma, o padre Wiltgen dirigiu a agência de notícias Divine Word News Service, com boletins
noticiosos em seis idiomas. Isso deu-lhe acesso a «toda a correspondência
oficial, documentos e textos de trabalho enviados aos Padres Conciliares pelo
secretariado do Concílio». Wiltgen também teve «acesso a toda a
correspondência e documentação enviada pelo grupo do Reno aos seus membros»[2].
Ninguém contestou os factos apresentados no bem informado e documentado livro.
Pelo contrário, o padre dominicano francês Yves Congar, líder da Aliança
Europeia e, possivelmente, o teólogo mais influente do Concílio, declarou: «O
P. Wiltgen (...) era notavelmente bem informado e o seu relato, que
mostra o desenrolar de todo o Concílio, está cheio de detalhes precisos.
(...) Em resumo, o Reno era, na realidade, aquela ampla e vigorosa corrente
da teologia católica e da ciência pastoral que havia começado no início dos
anos 50 e, no que diz respeito a questões litúrgicas e fontes bíblicas, ainda
antes disso»[3].
Em 2010, o historiador Roberto de Mattei publicou o seu magnífico Il Concilio Vaticano II: Una storia mai
scritta[4].
De Mattei confirmou e ampliou o quadro pintado pelo P. Wiltgen, acrescentando
novos documentos e considerações. Por exemplo, de Mattei destacou o papel do
Bispo brasileiro D. Hélder Pessoa Câmara ‒ um grande amigo dos Cardeais Montini (futuro Paulo
VI) e Suenens, Primaz da Bélgica ‒ como um dos organizadores da corrente progressista[5].
O Prof. de Mattei estuda o contexto ideológico do Concílio, as suas raízes
neo-modernistas e menciona reacções importantes contra essa tendência
teológica, enfatizando, entre outras coisas, o papel do Prof. Plinio Corrêa de
Oliveira, especialmente com o seu livro Em
Defesa da Ação Católica, de 1943[6].
A Nouvelle
Théologie
A “aliança” que o padre Wiltgen descreveu e que Roberto de Mattei chamou de «rede
de relações»[7]
foi uma vasta corrente teológica, ou movimento, neo-modernista, conhecida como
a Nouvelle Théologie[8].
As doutrinas desta corrente, que os padres dominicanos Marie-Michel Labourdette[9] e
Réginald Garrigou-Lagrange denunciaram em 1946[10], foram
condenadas, pelo Papa Pio XII, em 1950, na encíclica Humani Generis. Os seus principais representantes, incluindo o P.
Yves Congar, O.P., e o P. Henri de Lubac, S.J., foram proibidos de exercer
cargos de ensino superior[11].
O Papa João XXIII, entretanto, reabilitou esta corrente neo-modernista
convidando os padres Congar, de Lubac, e Jean Danielou, S.J., como peritos do Concílio. No seu livro sobre
o Vaticano II, o P. John W. O’Malley escreveu: «Os teólogos da “nouvelle
théologie”, como Henri de Lubac e Yves Congar, foram reabilitados no Concílio
Vaticano II»[12].
Escrevendo sobre o Vaticano II, o historiador francês Philippe Levillain diz
que na Comissão Teológica Preparatória do Concílio, «entre os consultores,
pode-se notar a presença dos Padres Congar, de Lubac, Hans Küng, etc. Todo o
grupo dos teólogos implicitamente condenados pela encíclica Humani Generis, em
1950, havia sido chamado a Roma por vontade de João XXIII»[13].
No seu livro, Nouvelle Théologie-New
Theology: Inheritor of Modernism, Precursor of Vatican II, que teve vasta repercussão, Jürgen
Mettepenninghen fala de uma «implícita “reabilitação” da nouvelle théologie
durante o Concílio Vaticano II». E explica: «De facto, o Concílio parece
representar um momento de transformação na recepção da nouvelle théologie. Não
apenas vários representantes do movimento tiveram a oportunidade de participar
no próprio Concílio, mas a sua influência, como podemos ver nas acta [registos]
do Concílio e em diferentes diários do Concílio, acabou por ser muito
considerável». Mettepenninghen prossegue a comentar: «[O] próprio
Concílio Vaticano II (...) finalmente apropriou-se das características
centrais das ambições da nouvelle théologie. (...) A deposição da
neo-escolástica romana e a assimilação da nouvelle théologie permitem-nos falar
(...) da reabilitação de Chenu, Congar e de Lubac durante o Concílio». E
conclui: «[O] Concílio transformou as conotações negativas associadas à
nouvelle théologie em conotações positivas»[14].
Segundo a revista católica progressista Informations
Catholiques Internationales, o P. Congar «inspirou directamente dez dos
dezasseis textos [conciliares]»[15]. O
próprio P.Congar reconhece a sua participação activa na redacção de oito dos
documentos conciliares: «Eu contribuí [para]: Lumen Gentium, De Revelatione,
De ecumenismo, declaração sobre as religiões não-cristãs, esquema 13 [Gaudium
et Spes], De Missionibus, De Libertate religiosa, De Presbyteris»[16].
Na sombra de Teilhard de Chardin
No seu estudo sobre a nova teologia, o P. Garrigou-Lagrange enfatizou o papel
das teorias evolucionistas panteístas do P. Pierre Teilhard de Chardin, S.J.,
nesse movimento neo-modernista[17]. Embora
o Padre Teilhard de Chardin tenha sido proibido de publicar os seus escritos,
estes eram mimeografados e circulavam em seminários e comunidades religiosas.
As suas teorias destruíam qualquer possibilidade de dogmas imutáveis ou a
distinção entre o natural e o sobrenatural. O naturalismo era uma das
características da Nouvelle Théologie,
especialmente nos escritos do Padre Henri de Lubac, S.J.[18],discípulo
do Padre Teilhard de Chardin, sobre o qual escreveu numerosos livros[19].
No seu livro Principles of Catholic
Theology, publicado em 1982, o Cardeal Joseph Ratzinger destaca a
influência do P. Teilhard de Chardin nas doutrinas do Vaticano II e,
especialmente, na Gaudium et Spes.
O Cardeal Ratzinger fala do optimismo em relação ao “progresso” que prevalecia
na época do Concílio e comenta:
«No domínio católico, o Concílio Vaticano II promoveu a participação neste
movimento geral. (...) O impulso dado por Teilhard de Chardin exerceu
uma ampla influência. Com uma visão ousada, incorporou o movimento histórico do
Cristianismo no grande processo cósmico de evolução de Alfa para Ômega».
«A “Constituição Pastoral sobre a Igreja no Mundo Moderno” do Concílio
acatou a sugestão; o slogan de Teilhard “Cristianismo significa mais progresso,
mais tecnologia” tornou-se um estímulo no qual os padres conciliares (...) encontraram
uma esperança concreta que era mais fácil de interpretar e disseminar do que o
significado das complicadas discussões sobre a colegialidade dos Bispos, o primado
do Papa, a Escritura e a Tradição, o sacerdote e os leigos»[20].
O estudo do P. Garrigou-Lagrange mostra que, ao aceitar um conceito relativista
e evolucionista de verdade, a Nouvelle
Théologie caiu no mesmo erro que os modernistas. Cita a condenação de São
Pio X no decreto Lamentabili Sane: «A
verdade não é mais imutável que o próprio homem, na medida em que evoluiu com
ele, nele e através dele»[21]. Também
cita a encíclica Pascendi, na qual,
falando dos modernistas, o santo Papa diz: «pervertem o conceito eterno de
verdade»[22].
Em 1946, o Papa Pio XII apontou a gravidade dessa mudança no conceito de
verdade: «Se alguém pensasse que tinha de concordar com uma ideia como essa, o
que seria dos dogmas católicos, que nunca devem mudar? O que aconteceria com a
unidade e a estabilidade da fé?»[23].
O discurso de João XXIII na abertura do
Concílio e a Nouvelle Théologie
Em 12 de Agosto de 1950, com a encíclica Humani Generis, o Papa Pio XII publicou a tão esperada condenação
da Nouvelle Théologie.
Um dos pontos centrais da Nouvelle
Théologie foi o abandono do uso da Filosofia Escolástica, especialmente do
Tomismo, na Teologia. Por esta razão, Pio XII defendeu a Filosofia Escolástica,
que o Magistério da Igreja sempre aceitou como a mais adequada como auxiliar da
Teologia:
«A Igreja exige que os futuros sacerdotes sejam instruídos nas disciplinas
filosóficas, segundo o método, a doutrina e os princípios do Doutor
Angélico (CIC.[1917] cân. 1366, §2), visto que, através da experiência de
muitos séculos, conhece perfeitamente que o método e o sistema do Aquinate se
distinguem pelo seu valor singular, tanto para a educação dos jovens quanto
para a investigação das mais recônditas verdades, e que a sua doutrina está
afinada como que em uníssono com a divina revelação e é eficacíssima para
assegurar os fundamentos da fé e para recolher, de modo útil e seguro, os
frutos do são progresso»[24].
Ora, no seu discurso de abertura do Concílio, intitulado Gaudete Mater Ecclesiae (11 de Outubro de 1962), o Papa João XXIII
pediu que o Concílio adoptasse o pensamento moderno, o que implicava abandonar
o Tomismo ‒ o que
era o objectivo da Nouvelle Théologie.
Comparando algumas das condenações feitas, por Pio XII, na encíclica Humani Generis, com o texto deste
discurso, não se pode deixar de ver a semelhança entre estas condenações à Nouvelle
Théologie e o que João XXIII apresenta como o propósito do Concílio.
Pio XII condenou o uso da Filosofia
moderna
«[Os inovadores] crêem que se abre também o caminho para obter, segundo
exigem as necessidades actuais, que o dogma seja formulado com as categorias da
Filosofia moderna, quer se trate do imanentismo, ou do idealismo, ou do
existencialismo, ou de qualquer outro sistema»[25].
No parágrafo seguinte, o Papa refuta essa afirmação:
«É evidente que tais esforços não somente levam ao relativismo dogmático,
mas já de facto o contém, pois o desprezo da doutrina tradicional e da sua
terminologia favorece tal relativismo e fomenta-o»[26].
Mais adiante, Pio XII insiste:
«E, ao desprezarem esta Filosofia, enaltecem outras, antigas ou modernas,
orientais ou ocidentais, de forma tal a parecer insinuar que toda Filosofia ou
doutrina opinável, com o acréscimo de algumas correcções ou complementos, se
for necessário, harmonizar-se-á com o dogma católico; o que nenhum fiel pode
duvidar seja de todo falso, principalmente quando se trata dos erróneos
sistemas chamados imanentismo, ou idealismo, ou materialismo, seja histórico,
seja dialéctico, ou também existencialismo, tanto no caso de defender o
ateísmo, quanto no de impugnar o valor do raciocínio metafísico»[27].
João XXIII, pelo contrário, ordenou o
uso dessa Filosofia
A doutrina católica, diz João XXIII, «seja estudada e exposta por meio de
formas de indagação e formulação literária do pensamento actual»[28].
João XXIII justifica o uso de Filosofias modernas, dizendo: «Uma é a
substância da antiga doutrina do “depositum fidei” e outra é a formulação que a
reveste»[29].
Agora, as verdades da fé são expressas através de conceitos e palavras que
exprimem a sua substância. Assim, as Filosofias modernas não podem ser usadas
para expressar dogmas, pois não aceitam o princípio de causa e efeito nem o de
não-contradição[30].
Por outro lado, como disse Pio XII, a Igreja examinou cuidadosamente as noções
e palavras usadas pelo Magistério para expressar dogmas. Portanto, não devem
ser alteradas: «Algumas dessas noções não só [foram] empregadas mas também
sancionadas por concílios ecuménicos; de sorte que não é lícito apartar-se
delas»[31].
Um Concílio que não condena erros
No seu discurso de abertura, João XXIII declarou também que o magistério do
Vaticano II teria um «carácter prevalentemente pastoral»[32]. Por
esta razão, separando-se da prática anterior da Igreja, não proclamaria novas
verdades nem condenaria erros: «A Igreja sempre se opôs a estes erros:
muitas vezes, condenou-os com a maior severidade. Nos nossos dias, porém, a
esposa de Cristo prefere usar mais o remédio da misericórdia que o da severidade»[33].
Assim, ao contrário dos Concílios anteriores, o Vaticano II não condenaria os
erros da época, quer teológicos quer filosóficos. O historiador francês
Philippe Levillain avaliou isto com precisão: «A primeira definição do
Concílio, clara e decisiva, foi negativa. O Vaticano II não irá fazer
condenações. Sobre este ponto, as palavras de João XXIII dificilmente permitem
quaisquer [outras] interpretações»[34].
Se assim é, isto equivale a uma mudança na finalidade dos Concílios Ecuménicos
e no próprio múnus magisterial da Igreja.
Ao estudar o magistério dos bispos, o teólogo jesuíta espanhol P. Joaquín
Salaverri diz que, reunidos num Concílio, os Bispos «definem doutrinas
porque isto é próprio do Concílio Ecuménico; fazem decretos definitivos que estabelecem
a doutrina que deve ser aceite ou crida; e condenam, com anátema, aqueles que
sustentam ou crêem em opiniões contrárias»[35].
O Papa Pio IX expôs essa finalidade de um Concílio Ecuménico no documento com o
qual convocou o Concílio Vaticano I. Nele, o Papa que definiu a Imaculada
Conceição, explicou que os Concílios são convocados pelos Papas «para
definir dogmas, condenar erros dispersos, propor, ilustrar e desenvolver a
doutrina católica, manter e reforçar a disciplina eclesiástica e corrigir os costumes
corruptos dos povos»[36].
Alguns Concílios tiveram um propósito mais restrito, por exemplo, os de
carácter judicial, ou aqueles reunidos para convocar uma Cruzada contra os
muçulmanos, para resolver problemas disciplinares ou abusos por parte dos
Imperadores do Sacro Império Romano[37].
Por esta razão, depois de expor a verdade do dogma, os Concílios Ecuménicos
sintetizavam e condenavam os erros contrários, lançando anátemas contra aqueles
que os defendiam. Por exemplo, o I Concílio do Vaticano condenou como merecedor
de anátema quem professar o seguinte erro: «Se alguém disser que é possível
que aos dogmas declarados pela Igreja deva, por vezes, de acordo com o
progresso da ciência, ser atribuído um significado diferente daquele que a Igreja
compreendeu e entendeu: que seja anátema»[38].
O perigo da misericórdia mal
compreendida
Além de abandonar o propósito comum de um Concílio, o Papa João XXIII deu como
motivo para não condenar os erros o facto de que hoje a Igreja preferiria usar
de misericórdia. Entretanto, uma das obras de misericórdia espiritual é
corrigir os que erram.
Segundo São Tomás de Aquino, a correcção fraterna é exigida pela caridade
quando se trata de uma correcção individual sem repercussões sociais. Mas é
outra a correcção exigida pela justiça: aquela «que se obtém não só
advertindo o irmão, mas também, às vezes, castigando-o, para que outros, por
medo, desistam do pecado». Esta correcção, continua, é a obrigação dos
Prelados, «cuja tarefa não é apenas
admoestar, mas também corrigir por meio de punições»[39].
Como São Tomás também afirmou, o perigo de entender a misericórdia apenas como
um acto de caridade, sem levar em conta o bem comum e o dever de justiça, leva
à dissolução da sociedade: «A misericórdia sem justiça é a mãe da
dissolução; [e] a justiça sem misericórdia é crueldade»[40].
Optimismo utópico
Além dos seus sérios aspectos doutrinários, não se pode deixar de apontar o
optimismo utópico do discurso inaugural do Concílio.
Em 1962, quando o discurso foi proferido, o comunismo dominava grande parte do
mundo. Governava grandes porções da Europa e da Ásia e tinha penetrado nas
Américas, na ilha de Cuba. Milhões de católicos eram perseguidos e a Igreja
tinha a sua liberdade restringida.
Entretanto, nem o comunismo e os seus erros, ou como lutar contra ele, foi
mencionado seja pelo Papa, seja pelo Concílio. Tampouco João XXIII se referiu à
crescente neo-paganização do Ocidente: o abandono da prática religiosa, a
imoralidade das modas e dos costumes, e a destruição gradual da família. Do
mesmo modo, não se referiu à crise interna da Igreja, aos erros generalizados
da Nouvelle Théologie, à falta de
zelo do clero e dos leigos e ao desejo de agradar ao mundo.
Este optimismo utópico levou o Papa a chamar pejorativamente “profetas da
desgraça” a quem estava preocupado com a situação: «Nos tempos actuais, não
vêem senão prevaricações e ruínas»[41]. «Mas
a Nós parece-Nos que devemos discordar desses profetas da desgraça, que
anunciam acontecimentos sempre infaustos, como se estivesse iminente o fim do
mundo»[42].
Tal expressão, surpreendente nos lábios de um Papa que havia acabado de invocar
a misericórdia, não passou despercebida. O Cardeal Giacomo Biffi (1928-2015),
antigo Arcebispo de Bolonha, observou com inteligência e um toque de ironia:
«Na história da Revelação, os verdadeiros profetas foram aqueles que,
geralmente, anunciavam castigos e calamidades, como em Isaías (capítulo 24),
Jeremias (capítulo 4), e Ezequiel (capítulos 4-11). O próprio Jesus, no
capítulo 24 do Evangelho de Mateus, teria que ser contado entre os “profetas da
desgraça”: a sua proclamação de futuros triunfos e alegrias iminentes,
geralmente, não se relacionam com a existência aqui na terra, mas sim com a
“vida eterna” e o “Reino dos Céus”. Mas as pessoas na Bíblia que, geralmente,
proclamam a iminência de tempos tranquilos e serenos são, ao contrário, os
falsos profetas (ver capítulo 13 do Livro de Ezequiel)»[43].
O “espírito do Concílio”
O discurso de João XXIII foi de grande importância para criar o “espírito do
Concílio”, um espírito de abandono da tradição e de desistência da luta contra
os erros do mundo moderno.
Ninguém pode descrever melhor o que foi esse espírito do que um teólogo que
teve intensa participação nas quatro sessões do Concílio, o então P. Joseph
Ratzinger. Ratzinger descreveu as suas impressões num livro publicado logo após
o evento conciliar, intitulado Theological
Highlights of Vatican II.
Sobre o discurso inaugural de João XXIII, o P. Ratzinger comenta que o Papa «rejeitou
todas as condenações meramente negativas», e que «o Concílio não deveria
envolver-se em disputas escolásticas», mas deveria engajar-se em «diálogo
com os tempos presentes»[44].
Para o P. Ratzinger, «a atmosfera do Concílio foi predeterminada pelo
espírito generoso desse Papa que, nisto, diferiu marcadamente do Papa Pio IX,
que havia convocado o Concílio Vaticano I». João XXIII, continua,
influenciou o Concílio para que tivesse «abertura e sinceridade», num
sentido muito diferente da «neurose
anti-modernista que tinha repetidamente paralizado a Igreja desde a viragem do
século». Segundo o P. Ratzinger, no Concílio, esta «neurose (...) parecia
estar a caminhar para uma cura»[45].
Mais tarde, comentando a discussão do texto sobre as fontes da Revelação,
preparado pela Cúria Romana, o P. Ratzinger critica a sua «mentalidade
anti-modernista», «marcada
[pelo] Syllabus de Pio IX», «com zelo excessivamente
unilateral». Uma atitude coerente com uma mentalidade que «alcança
o seu zênite nas várias medidas de Pio X contra o Modernismo» e continuou «até que a sua
última reverberação soou na encíclica Humani Generis, de Pio XII». «Este
documento», comenta, «levou adiante mais uma vez a linha de pensamento
de Pio IX e Pio X»[46].
Ainda para o P. Ratzinger, a grande questão no Concílio era escolher entre uma
«posição intelectual de “anti-modernismo”» ‒ que descreve como «a velha política de
exclusividade», fruto de «uma negação
quase neurótica de tudo o que era novo» ‒, ou, ao contrário, mudar para uma posição de «encontro
positivo (...) com o mundo de hoje»[47].
Segundo ele, «[o] Concílio tinha-se colocado resolutamente contra a
perpetuação de um anti-modernismo unilateral e, assim, tinha escolhido uma nova
e positiva abordagem»[48].
Anos mais tarde, o já Cardeal Joseph Ratzinger expressou o seu acordo com a
ruptura do Concílio em relação à posição dos Papas anteriores que condenaram os
erros da Revolução Francesa, do Liberalismo e do Modernismo.
Em Princípios de Teologia Católica, o
Cardeal Ratzinger nota o optimismo que guiou o Concílio. Referindo-se à
Constituição Gaudium et Spes, escreve: «O texto e, mais ainda,
as deliberações a partir das quais evoluiu, respiram um optimismo
surpreendente. Nada parece impossível se a humanidade e a Igreja trabalharem
juntas»[49].
Afirma, ainda, que a Gaudium et Spes
foi fruto de uma nova posição da Igreja em relação ao mundo, proposta, por João
XXIII, no seu discurso de abertura.
«A afirmação do presente que ressoou no discurso do Papa João XXIII, na
abertura do Concílio, é levada à sua conclusão lógica: a solidariedade com o
hoje parece ser a promessa de um novo amanhã».
Falando da Gaudium et Spes,
prossegue:
«Se é desejável oferecer um diagnóstico do texto como um todo, podemos dizer
que (em conjunto com os textos sobre liberdade religiosa e as religiões
mundiais) é uma revisão do Syllabus de Pio IX, uma espécie de contra-syllabus».
Em nota de rodapé, acrescenta:
«A posição tomada no Syllabus foi adoptada e continuou na luta de Pio X
contra o “Modernismo”»[50].
O Cardeal Ratzinger afirma, a seguir, que as posições assumidas pelos Papas Pio
IX e São Pio X visavam a situação do mundo decorrente da Revolução Francesa e
que a Gaudium et Spes «serve como
um contra-syllabus e, como tal, representa, por parte da Igreja, um intento de
reconciliação oficial com a nova era inaugurada em 1789»[51].
Em resumo, o “espírito” que dominou o Concílio Vaticano II e inspirou os seus
textos, marcado por «um optimismo surpreendente», foi um “espírito” de abandono da
Tradição da Igreja e, especialmente, do seu espírito militante e anti-mundano.
O novo “espírito” voltou-se especialmente contra o Concílio de Trento e o
Concílio Vaticano I, assim como o Syllabus
de Pio IX e a encíclica Pascendi de
São Pio X. Foi o mesmo espírito que animou os liberais no século XIX, os
modernistas no início do século XX e a Nouvelle
Théologie.
Luiz Sérgio Solimeo
é um estudioso católico, professor e escritor de
diversos livros, ensaios e artigos. Ingressou, em 1960, na Sociedade Brasileira
de Defesa da Tradição, Família, Propriedade (TFP). Actualmente, ensina
Filosofia e História no Instituto Sedes Sapientiæ, da TFP americana.
[1]
Ralph M. Wiltgen,S.V.D., The Rhine Flows Into the Tiber: The Unknown Council
(Nova Iorque: Hawthorne Books, 1967). Publicado, no Brasil pela Editora
Permanência, Rio de Janeiro, s/d. O livro foi publicado também na Itália, na
França e noutros Países.
[2]
Ralph M. Wiltgen,S.V.D., The Rhine Flows Into the Tiber: A History of
Vatican II (Rockford, Ill.: TAN Books, 1985), 2. Neste artigo, citamos esta
edição de 1985, que traz um subtítulo ligeiramente modificado.
[3]
Révue des Sciences Philosophiques et Théologiques (Paris, 1977), citado em
Wiltgen, The Rhine Flows Into the Tiber, 2.
[4]
Roberto de Mattei, Il Concilio Vaticano II: Una storia mai scritta.
Lindau, Turim, 2010; tradução inglesa: The Second Vatican Council: An
Unwritten Story, ed. Michael M. Miller (Fitzwilliam, N.H.: Loreto
Publications, 2012); tradução portuguesa: O Concílio Vaticano II: Uma História
Nunca Escrita. Ed. Caminhos Romanos, Porto, s/d.
[5]
O Prof. de Mattei menciona as conversas que Dom Hélder teve com o Cardeal
Suenens, logo na primeira sessão. Suenens foi uma das figuras mais importantes
do Concílio e Paulo VI nomeou-o um dos quatro moderadores. O Bispo brasileiro
sugeriu que o Cardeal Suenens assumisse a liderança dos progressistas. O
Cardeal respondeu: “Todos sabem da sua amizade com Montini: porque que está a
pensar em mim e não nele para... a liderança do Concílio?”. O Bispo respondeu:
“Devemos reservar Montini como successor de João [XXIII]”. O Cardeal Suenens,
acrescenta Dom Hélder, “mostrou-se completamente de acordo” (Hélder Pessoa
Câmara, Lettres Conciliaires, vol. 2, 657, citado em de Mattei, Concílio
Vaticano II, 193).
[6]
Ibid., 55-71.
[7]
Ibid., 218.
[8]
Aqui tomamos esta designação no seu sentido amplo, incluindo os movimentos
bíblicos, litúrgicos, ecuménicos e teológicos de orientação reformista,
neo-modernista e protestantizante que surgiram na Europa por volta da década de
1930. São Pio X, na introdução ao Juramento Anti-Modernista, denunciou a
existência de uma “associação secreta” (clandestinum foedus) formada pelos
modernistas. Embora condenados pela Autoridade Suprema, os conspiradores
continuaram a actuar em seminários e universidades católicas, “injectando o
vírus da sua doutrina nas veias da sociedade cristã” (Motu Proprio Sacrorum
Antistum, Set. 1910, http://www.vatican.va/content/piusx/la/motu_proprio/documents/hf_p-x_motu-proprio_19100901_sacrorum-antistitum.html).
[9]
Marie-Michel Labourdette, O.P., “Fermes propos”; Révue Thomiste 47 (1947):
5-19. Para um bom resumo da polémica, ver Philip J. Donnelly, S.J., “Current
Theology Theological Opinion on the Development of Dogma”, http://cdn.theologicalstudies.net/8/8.4/8.4.4.pdf.
[10]
Réginald Garrigou-Lagrange, O.P., “La nouvelle théologie où va-t-elle?”.
Angelicum 23, n. 3/4 (1946): 126-45. Para uma tradução em inglês, ver “Where is
the New Theology Leading Us?”; tradução de Suzanne M. Rini, Catholic Family
News Reprint Series, https://archive.org/stream/Garrigou-LagrangeEnglish/_Where%20is%20the%20New%20Theology%20Leading%20Us__%20-%20Garrigou-Lagrange%2C%20Reginald%2C%20O.P_#mode/2up;
ver também Aidan Nichols, O.P., “Thomism and the Nouvelle Théologie”, The
Thomist 64 (2000): 1-19.
[11]
Ver Jurgen Metterpenningen, Nouvelle Théologie-New Theology: Inheritor of
Modernism, Precursor of Vatican II (Londres-Nova Iorque: T & T Clark
International – A Continuum Imprint, 2010), 42, 96.
[12]
John W. O’Malley, What Happened at Vatican II (Cambridge, Mass.: Harvard
University Press, 2008), 43.
[13]
Philippe Levillain, La Mécanique Politique de Vatican II: La Majorité et
l’Unanimité dans un Concile (Paris: Éditions Beauchesne, 1975), 77.
[14]
Metterpenningen, Nouvelle Théologie, 6, 36.
[15]
Informations Catholiques Internationales, n.º 336 (15 de Maio de 1969), 9.
[16]
Yves Congar, O.P., My Journal of the Council (Collegeville, Minn.:
Liturgical Press, 2012), 871.
[17]
Fr. Aidan Nichols, O.P., escreve: «Quem foi colocado na linha de fogo [do
ensaio de Garrigou-Lagrange]? Aqueles especificamente mencionados, todos
jesuítas, foram Bouillard, Hans Urs von Balthasar, Gaston Fessard, de Lubac,
Pierre Teilhard de Chardin, mas, acima de tudo, Daniélou». Nichols,
“Thomism and the Nouvelle Théologie”, 4.
[18]
Comentando o livro Sobrenatural, do P. Henri de Lubac, o Cardeal
Giuseppe Siri (1906-1989) diz que este jesuíta «afirmou que a ordem
sobrenatural está necessariamente implícita na ordem natural. Como consequência
deste conceito, resulta, inevitavelmente, que o dom da ordem sobrenatural não é
gratuito porque é devido à natureza». Joseph Siri, Gethsemane:
Reflections on the Contemporary Theological Movement (Chicago, Ill.:
Franciscan Herald Press, 1981), 55-6.
[19]
O P. De Lubac publicou uma série de livros sobre o P. Teilhard de Chardin que
foram traduzidos para o inglês: The Religion of Teilhard de Chardin
(1967); Teilhard de Chardin: The Man and His Meaning (1965); Teilhard
Explained (1968); Teilhard Postume (1977). (Ver de Mattei, The
Second Vatican Council, nota 327).
[20]
Joseph Ratzinger, Principles of Catholic Theology (São Francisco:
Ignatius Press, 1987), 334. Numa nota de rodapé, o Cardeal Ratzinger
acrescenta: «Sobre a influência de Teilhard no Concílio Vaticano II, cf. o
estudo de Wolfgang Klein, Teilhard de Chardin und das Zweit Vatikanische Konzil
(Paderborn: Schöningh, 1975)». Ibid., nota 3.
[21]
São Pio X, decreto Lamentabili Sane, julho de 1907, n.° 58, https://www.papalencyclicals.net/pius10/p10lamen.htm.
[22]
São Pio X, encíclica Pascendi Dominici Gregis, n.°13, http://www.vatican.va/content/pius-x/en/encyclicals/documents/hf_p-x_enc_19070908_pascendi-dominici-gregis.html.
[23]
Pio XII, alocução Quamvis Inquieti, 17 de Setembro de 1946,
[24]
Pio XII, encíclica Humani Generis, 12 de Agosto de 1950, n.° 31, http://www.vatican.va/content/pius-xii/pt/encyclicals/documents/hf_p-xii_enc_12081950_humani-generis.html.
[25]
Ibid., n.º 15.
[26]
Ibid., n.º 16.
[27]
Ibid., n.º 32.
[28]
Discurso de abertura do Concílio. In Concílio Ecuménico Vaticano II,
Edições Paulinas, 1967, p. 18. Usamos aqui o texto do discurso de abertura
publicado no dia seguinte em L’Osservatore Romano e reproduzido por
quase todas as colecções de documentos do Vaticano II em diferentes idiomas. O
texto italiano do discurso publicado em L’Osservatore Romano difere um
pouco da versão latina. É mais explícito na sua aceitação da metodologia e do
pensamento modernos (Cf. Romano Amerio, Iota Unum, trad. John P. Parsons
[Kansas City, Mo.: Sarto House, 1996], 78). Do ponto de vista estritamente canônico,
o texto em latim é o texto oficial. Entretanto, a versão italiana é importante
para se conhecer a mente do pontífice e as suas intenções em relação ao
Concílio. O texto italiano parece ser o original, tanto mais que, num discurso
aos Cardeais, João XXIII citou o texto italiano de L’Osservatore. Isto
mostra que a versão de L’Osservatore expressava bem o pensamento e a
intenção de João XXIII para o Concílio. Ver “Discorso del Santo Padre Giovanni
XXIII al Sacro Collegio e alla Prelatura Romana in occasione della Solennità del
Santo Natale”, 23 de Dezembro de 1962, http://www.vatican.va/content/john-xxiii/it/speeches/1962/documents/hf_j-xxiii_spe_19621223_prelatura-romana.html.
[29]
Discurso de abertura do Concílio, Paulinas, p. 18.
[30]
Cf. Réginald Garrigou-Lagrange, La synthèse thomiste, troisième partie
(Paris: Desclée de Brouwer, 1947), http://www.christ-roi.net/index.php/Garrigou-Lagrange%2C_R%C3%A9ginald_Fr.%2C_La_synth%C3%A8se_thomiste%2C_troisi%C3%A8me_partie#LES_BASES_R.C3.89ALISTES_DE_LA_SYNTH.C3.88SE_THOMISTE.
[31]
Pio XII, encíclica Humani Generis, n.º 16.
[32]
Discurso de abertura do Concílio, Paulinas, p. 18.
[33]
Ibid., pp. 18-19.
[34]
Levillain, La Mécanique Politique de Vatican II,
57.
[35]
I. Salaverri, De Ecclesia Christi, vol. I, p. 3, n.° 559, in Sacrae
Theologiae Summa (Madrid: Biblioteca de Auctores Cristianos, 1958).
[36]
Pio IX, Bula Aeterni Patris, 29 de Junho de 1868, http://www.vatican.va/content/pius-ix/it/documents/litterae-apostolicae-aeterni-patris-29-iunii-1868.html.
[37]
Por exemplo, o Primeiro Concílio
Lateranense (1123) «aboliu o direito reivindicado, pelos príncipes leigos,
de investidura com anel e báculo e o usufruto de benefícios eclesiásticos e
tratou da disciplina da Igreja e da recuperação da Terra Santa dos infiéis».
O Primeiro Concílio de Lyon, em 1245, «excomungou e depôs o Imperador
Frederico II e dirigiu uma nova cruzada, sob o comando de São Luís, contra os
sarracenos e os mongóis». O Concílio de Vienne (1311-1313) foi convocado
especialmente para decidir sobre «os crimes e erros imputados aos Cavaleiros
Templários», como também «projectos de uma nova cruzada, a reforma do
clero e o ensino das línguas orientais nas universidades». J.
Wilhelm, S.V., “General Councils”, em The Catholic Encyclopedia (Nova
Iorque: Robert Appleton Company, 1908), consultado, a 26 de Agosto de 2020, a partir de New Advent: http://www.newadvent.org/cathen/04423f.htm.
[38]
Dogmatic Constitution Dei Filius, 24
de Abril de 1870, cânon IV, n. 3, http://www.vatican.va/content/pius-ix/it/documents/constitutio-dogmatica-dei-filius-24-aprilis-1870.html.
[39]
Summa
Theologica, II-II, q. 33, a. 3, c.
[40]
São Tomás de Aquino, Super Matthaeum, cap. 5, leitura 2, n.° 7.
[41]
Discurso de abertura do Concílio, Paulinas, p. 16.
[42]
Ibid.
[43]
Giacomo Biffi, Memorie
e Digressioni di un Italiano Cardinale (Siena, Itália: Cantagalli, 2007),
178.
[44]
Joseph Ratzinger, Theological Highlights
of Vatican II (Nova Iorque: Paulist Press, 1966), 22.
[45]
Ibid., 27.
[46]
Ibid., 40-2.
[47]
Ibid., 44.
[48]
Ibid., 48.
[49]
Joseph Ratzinger, Principles of Catholic Theology (San Francisco:
Ignatius Press, 1987), 380.
[50]
Ibid., 380-381 e nota 16.
[51]
Ibid., 382.
4 Comentários
Certamente TODOS os papas pós-conciliares usavam a tática do morde-assopra. Qdo confrontados "nunca sabiam" o que se passava, "deploravam" o fato...e o processo prosseguia.
ResponderEliminarque postagem maravilhosa e esclarecedora . obrigado
ResponderEliminarJá li a primeira parte: muito boa ! Agora lerei a segunda.
ResponderEliminarÉ de facto tudo muito claro,até a barriga de joão XXIII o denuncía(gula) com a gula costuma estar a luxúria! A comandar esta tropa a soberba! Há grande João!!! O invertido??
ResponderEliminar«Tudo me é permitido, mas nem tudo é conveniente» (cf. 1Cor 6, 12).
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