Um Cardeal eminente, mas não muito prudente



O Cardeal Joseph Zen Ze-kiun é um eminente Prelado que ama sinceramente a sua pátria e a Igreja. Nascido, em 1932, em Xangai, foi ordenado sacerdote, em 1961, na Congregação Salesiana; foi nomeado Bispo, em 1996, por João Paulo II, e, em 2006, criado Cardeal por Bento XVI. Foi Coadjutor, entre 1996 e 2002, e, depois, Bispo da Diocese de Hong Kong. Ninguém como ele conhece a complexidade da situação política e religiosa da China.    

A 9 de Janeiro de 2016, o Cardeal Zen, hoje Bispo emérito de Hong Kong, expressou uma severa crítica à política vaticana em relação à China desenvolvida durante o pontificado do Papa Francisco. O vaticanista Sandro Magister resume a situação nos seguintes termos: «Desde que está no poder, o Partido Comunista Chinês quis dotar-se de uma Igreja sujeita a si e separada de Roma, com bispos indicados por si, ordenados sem a aprovação do Papa, enfeudados a uma Associação Patriótica Católica Chinesa que Bento XVI definiu “irreconciliável” com a doutrina católica. Uma Igreja “oficial”, portanto, no limite do cisma. Entrelaçada a uma Igreja “subterrânea” dirigida por Bispos não reconhecidos por Pequim e fidelíssimos ao Papa que, no entanto, pagam todos os preços da clandestinidade: assédio, perseguições, prisões, sequestros».

O Cardeal Zen é, hoje, a voz mais representativa desta Igreja “subterrânea”. «São a voz dos sem voz não apenas para protestar contra as autoridades comunistas. Também o são para fazer certas questões às autoridades romanas. Nos últimos anos, têm sido realizados actos directamente contra a doutrina e a disciplina da Igreja: bispos ilegítimos e excomungados que pontificam solenemente, que conferem a sagrada ordem mesmo mais de uma vez; Bispos legítimos que tomam parte em consagrações episcopais ilegítimas até quatro vezes e a participação quase total dos bispos da comunidade oficial na Assembleia dos Representantes dos Católicos Chineses. Não se ouviu a voz de Roma. Os nossos irmãos na China não têm o direito de se admirar e fazer perguntas?».   

A Igreja subterrânea chinesa foi sacrificada sobre o altar de uma estratégia política que representa o retorno ao apogeu da Ostpolitik vaticana. Numa intervenção, a 13 de Fevereiro de 2018, em Asia News, Zen afirmou que o Secretário de Estado Parolin «ama a diplomacia da Ostpolitik do seu mestre Casaroli e despreza a fé genuína daqueles que, com firmeza, defendem a Igreja, fundada por Jesus sobre os Apóstolos, de qualquer ingerência de poder secular».     

Numa sucessiva carta a todo o Colégio Cardinalício de 27 de Setembro de 2019, o purpurado chinês acusou a Secretaria de Estado de incentivar «os fiéis na China a entrarem numa Igreja cismática (independente do Papa e às ordens do Partido Comunista)», concluindo com uma pergunta dramática: «podemos assistir passivamente a este assassinato da Igreja na China por parte de quem deveria protegê-la e defendê-la dos inimigos?».

Com estas declarações, o Cardeal Zen colocou-se na linha de tantas corajosas testemunhas da fé, a começar pelo Cardeal József Mindszenty, que, a 1 de Novembro de 1973, resistiu diante de Paulo VI, opondo uma respeitosa recusa ao seu pedido de renúncia da cátedra primacial de Esztergom. A 18 de Novembro do mesmo ano, Paulo VI removeu-o do cargo, mas o Cardeal não se calou e denunciou a Ostpolitik vaticana nas suas Memórias. Está em andamento a sua causa de beatificação.     

O Cardeal Zen enfraqueceu, no entanto, a lógica das suas afirmações quando, numa recente entrevista à CNA, quis advertir contra o “perigo” de interpretações polémicas do Concílio Vaticano II, afirmando que, depois de cinquenta anos, «a luz do Concílio conduz ainda hoje a Igreja na escuridão do seu caminho». A Ostpolitik que o Cardeal Zen critica é, de facto, filha e fruto do Concílio Vaticano II. Esta é uma evidência histórica que não admite negações.           

Nos anos em que se realizou o Vaticano II, de 1962 a 1965, o comunismo representou uma ameaça para a Igreja e para humanidade nunca conhecida na história. A assembleia dos Padres Conciliares, que se reuniu para discutir as relações entre a Igreja e o mundo moderno, não disse uma palavra sobre o comunismo, apesar de centenas deles terem pedido uma condenação pública e solene deste flagelo. O Cardeal Zen pediu para se redescobrir os textos do Concílio, que definiu os verdadeiros frutos do Vaticano II. «Através desses documentos sente-se a verdadeira voz do Espírito Santo», disse, e «o Espírito Santo de hoje não contradiz o Espírito Santo de ontem». No entanto, o Espírito Santo não levantou a sua voz contra o comunismo no Concílio. Então, talvez muitos teólogos e historiadores tenham razão, de Mons. Gherardini ao Cardeal Brandmüller, segundo os quais o valor magisterial e a autoridade vinculativa dos textos conciliares ainda se devem discutir, sem excluir que muitos desses documentos podem, um dia, terminar num cesto do lixo. Mas o que é mais importante é que o Concílio Vaticano II é um evento histórico que não pode ser reduzido a textos pesados
​​e ambíguos. A sua nota distintiva é o espírito que o moveu: um espírito segundo o qual mais importante que a doutrina era o modo pelo qual a doutrina deveria ser apresentada aos fiéis.

Afirma o Cardeal Zen: «Creio que seria muito profícuo ler o discurso de abertura do Vaticano II do Papa João XXIII, onde explica o verdadeiro significado de “aggiornamento”: diante de todas as ameaças da civilização moderna, a Igreja não deve ter medo, mas encontrar os meios adequados para mostrar ao mundo o verdadeiro rosto de Jesus, o Redentor do homem». Pois bem, naquele discurso, que abriu o Vaticano II, a 11 de Outubro de 1962, João XXIII explicou que «uma coisa é a substância do “depositum fidei”, isto é, as verdades contidas na nossa doutrina, e outra é a formulação com que são enunciadas, conservando-lhes, contudo, o mesmo sentido e o mesmo alcance». O modo diferente era a passagem “do anátema ao diálogo”. No caso do comunismo, era necessário pôr de lado décadas de condenações para passar à nova estratégia da mão estendida. A convicção era que a colaboração com o inimigo teria produzido melhores resultados do que a luta contra ele. E o discurso de João XXIII, que agrada ao Cardeal Zen, foi a magna charta da política de “détente” que lhe desagrada.    

A primeira expressão da Ostpolitik, simbolizada pelo então Mons. Agostino Casaroli, foi o “compromisso” assumido pela Santa Sé com o governo soviético de não condenar de nenhuma forma o comunismo. Era esta a condição exigida pelo Kremlin para permitir a participação de observadores do Patriarcado de Moscovo no Vaticano II.         

Não há necessidade de grande sagacidade para compreender que a Ostpolitik em relação à Rússia foi fruto de uma precisa escolha política de João XXIII e de Paulo VI, assim como a Ostpolitik em relação à China é fruto da estratégia política do Papa Francisco. Os Secretários de Estado são executores das indicações dos Pontífices e os Pontífices assumem, porém, a responsabilidade das escolhas políticas da Santa Sé. A este respeito, João XXIII e Paulo VI, como o Papa Francisco hoje, cometeram relevantes erros pastorais e políticos.    

Não é a primeira vez na história que isto acontece. O ralliement de Leão XIII à terceira República maçónica foi um erro desastroso, do qual, hoje, os historiadores destacam as graves consequências. Mas criticar as escolhas estratégicas e pastorais de um Papa é legítimo e o Cardeal Zen fá-lo criticando a política, de ontem e hoje, da Santa Sé em relação ao comunismo. Se alguém lhe objectasse que os Papas são sempre guiados pelo Espírito Santo, ele poderia facilmente replicar que um Papa pode errar, como aconteceu e poderá ainda acontecer na história. E também nós estamos convencidos de que o Espírito Santo não assiste a Ostpolitik do Papa Francisco, mas ilumina as críticas do Cardeal Zen à Ostpolitik. Se, no entanto, um Papa pode errar, tal pode, por maioria de razão, valer para um Concílio, que continua a ser um Concílio válido. Válido, sim, mas catastrófico, como foi o vigésimo primeiro Concílio Ecuménico da Igreja. Se, por outro lado, devemos aceitar acriticamente o espírito e os textos deste Concílio, também seremos obrigados a aceitar a política de Francisco em relação à China, expressa pelas palavras de Mons. Marcelo Sánchez Sorondo, Chanceler da Pontifícia Academia das Ciências e da Pontifícia Academia das Ciências Sociais: «Neste momento, os que melhor colocam em prática a doutrina social da Igreja são os chineses [...]. Os chineses procuram o bem comum, subordinam as coisas ao bem geral». A China «está a defender a dignidade da pessoa». E, com a louvável China, é urgente encontrar as melhores relações.    

Mons. Sánchez Sorondo é um homem de confiança do Papa Francisco, enquanto que o Cardeal Zen foi severamente criticado pelo establishment vaticano pela posição que assumiu sobre o acordo entre a Santa Sé e a China comunista. Diante destas críticas, no passado dia 29 de Fevereiro, o Arcebispo Carlo Maria Viganò escreveu uma carta de apoio ao Cardeal Zen, na qual recorda que «o Vaticano fez tudo e mais alguma coisa para entregar nas mãos do Inimigo a Igreja Mártir Chinesa: fê-lo assinando o pacto secreto; fê-lo legitimando “bispos” excomungados, agentes do regime; fê-lo com a demissão de Bispos legítimos; fê-lo exigindo que os Sacerdotes fiéis se registassem na igreja dominada pela ditadura comunista; fá-lo diariamente calando sobre a fúria persecutória que, a partir daquele infeliz Acordo, entrou num crescimento sem precedentes. Fá-lo agora com esta ignóbil missiva a todos os Cardeais com o objectivo de acusá-lo, denegri-lo e isolá-lo. Nosso Senhor assegura-nos que nada nem ninguém poderá jamais arrancar da Sua mão aqueles que resistem ao inimigo infernal e aos seus acólitos, triunfando sobre eles “pelo sangue do Cordeiro e pelo testemunho da sua palavra” (Ap 12, 11)».     

Mons. Viganò é o mesmo Prelado que, com Mons. Athanasius Schneider, abriu recentemente um debate sobre o Concílio Vaticano II. Se o Cardeal Zen não partilha da utilidade deste debate, teria sido mais prudente que se tivesse calado, porque as suas declarações de acrítica exaltação do Vaticano II não lhe valeram nenhum apoio, mas correm o risco de fazê-lo perder muitos e, sobretudo, ofendem a verdade e tiram credibilidade à sua sacrossanta crítica da Ostpolitik vaticana.         

Roberto de Mattei      

Através de Corrispondenza Romana            

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