O artigo escrito
por Vladimir Putin, verdadeira proclamação, abaixo trechos comentados, desfaz
ilusões, uma vez mais. Traz afirmações elucidativas para gente de espírito objectivo.
Contudo, para viciados em fantasias – legiões que, infelizmente, ainda veem no
ocupante do Kremlin um líder que justifica esperanças –, as crendices resistem
à evidência. No caso, à evidência do preto no branco sobre o papel.
Em 10 de Junho
último, o presidente russo publicou, em New Europe, matéria extensa, a bem
dizer ensaio, sobre as suas convicções e orientação política. Mereceria análise
dos que têm por ofício esclarecer a opinião pública no Brasil – não a vi. Afinal,
trata-se de político com chance, por enquanto, de permanecer no poder até 2036,
ultrapassando em tempo (como primeiro-ministro e presidente) no leme do país
importante, intervencionista e imperialista, de muito, os anos de chumbo da ditadura
estalinista (1927-1953).
O artigo de Putin
intitula-se 75.º aniversário da grande vitória: responsabilidade histórica
compartilhada e o nosso futuro – em inglês, 75th Anniversary of the Great Victory: Shared
Responsability to history and our Future. Está na rede. Coloca a Rússia actual
como continuadora, em especial na política externa, da URSS (União das
Repúblicas Socialistas Soviéticas). E enfatiza que o norte, segundo ele, lá na
era estaliniana e cá na era putiniana, é e sempre foi a protecção e defesa dos
interesses nacionais russos. Nesse aspecto, faz clara e argumentada defesa da
política estalinista, adornando o seu autor com os adereços de grande e avisado
nacionalista. Por alto, só uma vez, circunlóquio rápido para minorar o peso a
reserva, censura a perseguição comunista à religião e os ataques à história
russa («troças contra a nossa história nacional, tradições e fé que os
bolchevistas tentaram impor, em especial nos primeiros anos»).
Ponto
curioso: em nenhum momento, Putin diz que o povo russo lutou na II Guerra
Mundial pela defesa do comunismo. A guerra é patriótica, os russos defendiam a
terra ancestral, a terra do pai, a terra da mãe, os lares, crianças, pessoas
amadas, famílias. Estaline, de facto, lançou mão desse artifício, sofreria
estrondosa derrota se apelasse para a defesa do comunismo contra o nazismo. O
povo russo tinha horror ao comunismo, que o escravizara. E Putin embarca aqui;
hoje, como ontem foi com Estaline, o foco é defender a Mãe Pátria. Mas, é
claro, a Rússia com a guerra consolidou e expandiu o comunismo, realidade ovante
calada por Putin.
Esbofeteando
a história, o líder russo atribui papel decisivo à contribuição da URSS na
derrota do nazismo (seria maior que o concurso norte-americano): «A União
Soviética e o Exército Vermelho, não importa o que se está a tentar provar
hoje, foram as principais e centrais contribuições para a derrota do nazismo».
Desvaloriza, congruentemente, o amparo norte-americano à Rússia soviética enviada
em especial por meio do Lend and Lease Act, evidenciando que a mentira,
da qual era useira e vezeira a União Soviética, continua amplamente usada como
instrumento de propaganda na Rússia actual: «Seremos sempre gratos ao apoio aliado
fornecendo ao Exército Vermelho munição, matéria prima, alimento e equipamento.
Ajuda significativa em torno de 7% da produção militar total da União Soviética».
De passagem,
alguns dados sobre o Lend and Lease Act. Mais de um terço de todos os
explosivos usados durante a Guerra. 55% do alumínio, mais de 80% do cobre, 57% do
combustível dos aviões, 35 mil rádios, 32 mil motocicletas, 33% dos veículos,
20 mil lançadores de foguetes foram montados em cima de camiões
norte-americanos, recuperação do sistema ferroviário, 2 mil locomotivas, metade
dos trilhos para o sistema ferroviário. Um enorme etc.
Justifica o
autocrata russo, inteiramente, qualificando-o como medida de defesa nacional, o
pacto Ribbentrop-Molotov, bem como de justa a anexação tirânica à URSS da Estónia,
Lituânia e Letónia «feita com base contratual com o assentimento das
autoridades eleitas». Afirma, em relação às nações do Leste europeu que
foram esmagadas por Estaline (Estados satélites): «[A União Soviética e o
Exército Vermelho] libertaram Varsóvia, Belgrado, Viena, Praga. [...] E,
assim, o Exército Vermelho começou a sua missão de libertação na Europa. Salvou
nações inteiras da destruição, da escravidão e do horror do Holocausto».
Enfim, a
Rússia de hoje, continuando a mesma política, seria a herdeira reconhecida da União
Soviética. E o que é que ela propõe? De começo, como herdeira, Putin articula nova
rodada de negociações, semelhante às conferências de Ialta e Potsdam, que, como
aquelas, reconfigurariam o mapa mundial (em especial, certamente, zonas de
influência). «Hoje, como em 1945, é importante demonstrar vontade política e
discutirmos juntos o futuro. Os nossos colegas, Xi Jinping, Macron, Trump e
Johnson, apoiam a iniciativa russa de termos uma reunião de líderes dos cinco
estados com bombas nucleares, membros permanentes do Conselho de Segurança».
Os temas são os mais esperados, amplos e genéricos – tudo o que é especialmente
importante. O Chefe de Estado russo julga fundamental o encontro das cinco
potências para dar rumo novo e estável ao mundo inteiro.
Acontecerá?
Não sei, julgo pouco provável, para não dizer impossível. Trump está em posição
fraca nas sondagens. Poderá ser substituído por Biden. Índia, Japão, Alemanha,
Paquistão aceitarão que, como no passado, outros países decidam o seu futuro? Quem acredita nisso? E Argentina, México,
Brasil, Indonésia, Canadá, Austrália? Israel? Os povos muçulmanos? Os árabes? Entre
outros, o que pensarão da tal reunião que os coloca, disfarçada mas
inequivocamente, em condição análoga à do menor de idade?
Há mais. A
Rússia – hoje tratada como potência inescrupulosa (mais no ponto, país bandido)
– não tem autoridade moral para convocar nada. Depois da anexação violenta da
Crimeia, foi excluída do G8. Foi excluída também das competições desportivas
internacionais por quatro anos, o que inclui os próximos Jogos Olímpicos. Está a
ser acusada de roubar pesquisas sobre a vacina contra o coronavírus. Enfiou o
nariz nas últimas eleições presidenciais nos Estados Unidos. Paro por aqui.
Em suma, por
todo o visto, parece improvável que os grandes de 1945 (e a China) se reúnam só
entre eles e se julguem com poderes para decidir o destino do mundo. Contudo, é
preciso ter sempre em vista a proposta de Putin, reiteração do desejo de
estabelecer uma espécie de pax romana estável e permanente pela divisão
do mundo em áreas de influência, como se deu em Ialta. É proposta perigosa, com
consequência, quiçá, mortais; poderá voltar com outros adornos.
Entretanto, o
governo russo continua expansionista: lembro apenas que apoia movimentos nacionalistas,
as ditaduras venezuelana, síria e cubana. Objectivo sempre presente: minar o
poder dos Estados Unidos. Em suma, na sua política, Putin descreve-se como autêntico
continuador de Estaline. E, aqui, concordamos com ele.
Péricles Capanema
Péricles Capanema
0 Comentários
«Tudo me é permitido, mas nem tudo é conveniente» (cf. 1Cor 6, 12).
Para esclarecimentos e comentários privados, queira escrever-nos para: info@diesirae.pt.